sexta-feira, 29 de dezembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 106

 

 

“Os outros nunca sentem,

Quem sente somos nós,

Sim, todos nós,

Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

 

Nada? Não sei…

Um nada que dói…”

 

Fernando Pessoa

 

 

Anda por aí, gastando os seus dias. Lançando um olhar vago sobre a zona envolvente, é capaz ainda de perceber com clareza algumas práticas propositadamente ocultadas aos seus olhos. Condescende, silenciando muitas vezes, mas não ignora o que vê…

 

O Alemão tem percebido ultimamente a acentuação do seu lado pessimista e o que vê diminui-lhe a vontade de falar. “E o que não posso e não quero exprimir fica sendo o mais secreto dos meus segredos” - Clarice Lispector.  

 

Sente no ar uma certa loucura que despreza assumidamente o bom senso. Outros tempos, diz-se. Usa-se e abusa-se de um emproado e superior individualismo. Falam-se palavras que nenhuma balança pesa, dardos perversos impunemente lançados sobre o outro. Utilizam-se olhares sobranceiros, altivezes praticadas sem qualquer legitimidade. Assumem-se incompreensíveis e censuráveis vaidades que projetam os convencidos a grandes alturas e isolam cada vez mais os “outros que nunca sentem”. Na verdade, os outros nunca sentem!...

 

A sociedade já não acolhe, repele. As portas que se abriam ao primeiro toque, já não atendem. As mãos que se estendiam abertas mesmo a quem não pedia, estão agora encolhidas. Os rostos que sorriam de bondade e ternura, estão agora tristes. Os corações que derramavam nobres sentimentos, estão agora fechados. O mundo desmorona-se!...

 

Mesmo assim, envergonhado pelo seu pessimismo, o Alemão dobra-se humilde e reverente perante o vigor da oração de Habacuque “… ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e as campos não produzam mantimento; as ovelhas da malhada sejam arrebatadas, e nos currais não haja vacas: todavia eu me alegrarei no Senhor: exultarei no Deus da minha salvação” – Bíblia Sagrada.



 

  

terça-feira, 19 de dezembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 105

 

“- Não é triste? perguntou. Você não se sente só?

(…) sorriu forte: - A gente acostuma.”

Caio Fernando Abreu

 

 

Antes do mais, perdoem-lhe o pessimismo!

 

Amar a paz implica, normalmente, a procura de lugares pouco frequentados, preferencialmente  desertos. O dia a dia em sociedade tornou-se desinteressante. A inevitável exposição de cada um, por mais discreta que seja, alimenta histórias, na sua maioria perversas, que cada vez mais afastam as pessoas entre si. A tão apreciada intriga pulula por todo o lado, até onde seria impensável encontrá-la. “Porque a todos é concedido ver, mas a poucos é dado perceber. Todos veem o que tu aparentas ser, poucos percebem aquilo que tu és.” – Nicolau Maquiavel.

 

Nos muitos anos que leva de vida, o Alemão nunca viu nada assim. Verdadeiramente espantado, assiste atualmente ao desfile contínuo e aparentemente inesgotável de tanto conhecimento sobre a vida do “outro”. E pergunta-se: por onde andaria tanto saber que somente agora se revelou, que superiores interesses justificarão a simultânea aparição de tantos babélicos devaneios? Quanta inquietação no mundo, insuportável agitação!...

 

Os sabichões multiplicam-se a cada dia. E que bem discursam do alto dos seus iluminados palanques, falando sobre tudo e, ainda mais, sobre todos! A não ser eles próprios, ninguém escapa aos incontrariáveis pareceres judiciosos que debitam categoricamente e com esmagadora sabedoria. Pena que acabem traídos por tamanha torrente de saber que os expõe a arreliadoras contradições: nos dias pares, apontam uma direção; nos ímpares, o seu contrário…

 

O Alemão vai vivendo os seus dias assumindo prazerosamente o que amou em criança e que continua a amar e a cumprir com zelo, mesmo depois de velho. Agora mais lentamente; a idade define o andamento… Alimenta-se de recordações que não perderam qualidades nutritivas e que, por isso, lhe mantêm bem viva a alma que ainda resiste. 


“A vida segue, mas as memórias dos momentos compartilhados com os amigos ficam connosco durante toda a vida” - anónimo.

 

 

 


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 104

 

Paz na terra aos homens de boa vontade. Isto é, paz para muito poucos…

 

 

“O silêncio é um retiro; é o elemento necessário para o descanso; é um portal para o outro mundo onde tudo se percebe, onde o ruído pede trégua e onde ficamos mais ricos com os ensinamentos do vazio; e é no vazio do silêncio onde encontramos a oportunidade de se escutar com os olhos para podermos educar a alma. Psiiiiuuuuu!”

Ricardo Fisher

 

A vista cansada do Alemão já não lhe permite ver grande coisa; nem ao perto nem ao longe! Ainda assim, o que vai conseguindo observar, mesmo que desfocado, permite-lhe conclusões nítidas sobre o que o rodeia. Os amigos conhecem o seu estilo narrativo e percebem que, embora diga o que sente, não costuma dizer tudo… abertamente.  Prefere as entrelinhas!

 

O que vê, entretanto, permite-lhe a pergunta: o que é que fizeram a este mundo, em que é que o transformaram? A perturbadora e permanente agitação em que ferve tornou-o definitivamente desinteressante para quem nele sempre procurou viver a sua vida em paz. Estranhos e negativos sentimentos emergiram sabe-se lá de onde, alimentando comportamentos antissociais que, por sua vez, originam uma generalizada e quase descontrolada inquietação. A pacificação já não é possível (nem interessa!…) e quem, com boa intenção, procure fazê-lo, rapidamente desiste pela viva oposição movida por parte dos interesses instalados.

 

 Alguns amigos não entenderão, mas ao Alemão, no momento, só lhe resta o silêncio, o retiro onde descansa e encontra alguma paz.

 

“Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”

Mia Couto





sábado, 25 de novembro de 2023




HISTÓRIA Nº. 103



Mas se tu soubesses como a solidão pode nos enriquecer…




“Existem nas recordações de todo o homem coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio…”

Fiódor Dostoiévski

 


Bem-acondicionadas, sempre prontas para uso pessoal, cento e duas fanecas da pedra resistem ao tempo que as confirma e mantem atuais. O Alemão escreveu-as para si e para os seus amigos, algumas delas numa linguagem que só ele entende na totalidade. Revisita-as com frequência, deleitando-se nas encantadoras recordações que a sua releitura carinhosamente lhe desperta. Lembranças que por instantes lhe reproduzem épocas em que, embora materialmente pobre, se alimentava da riqueza de princípios e valores humanos que caraterizava a sociedade de então.

 

A constante sublimação daqueles tempos tem-lhe valido o epíteto de conservador, normalmente atribuído a alguém que parou no tempo… Mas quem o conhece, sabe que não só não parou no tempo, como tem lutado pelo ressurgimento de valores cuja perenidade tem sido posta em causa, riqueza gradativamente desvalorizada até ao seu completo desuso nos dias de hoje. Mundo cada vez mais pobre!...

 

Avesso a confusões, a maior parte dos seus dias viveu-os em solidão. O Alemão, agora idoso, cujo cansaço é por demais notório, em boa hora adotou esse estilo de vida desde que se conhece… e é assim que gosta de estar. Convive com os seus pensamentos, com as suas lembranças, em constantes passeios pelos imensos corredores da sua história, onde tantos expositores preservam, ufanos de tamanha honra, troféus de enorme significado.

 

 

“-Só foge da solidão quem tem medo dos próprios pensamentos, das próprias lembranças.

- Talvez…

- Mas se tu soubesses como a solidão pode nos enriquecer…”

 

Érico Veríssimo   



   

quinta-feira, 2 de novembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 102

 


Oportunidade única…


 

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

 

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…

Quando se vê, já é 6ª. Feira…

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado…

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente…

 

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

 

Mário Quintana

 


A vida para ele começou muito cedo. Os deveres trazidos para fazer em casa ocuparam-lhe de tal modo os dias que, como discorre o poeta, nem deu pelo tempo passar. Mas quando pensava ter já definitivamente cumpridas todas as tarefas que lhe haviam sido cometidas - por ser tarde demais para ser reprovado…-, percebeu que, ainda hoje, lhe “acrescentaram” novas matérias para resolver. As férias grandes que nunca gozou bem como os intervalos de recreio que nunca aproveitou, e que desde há algum tempo se perspetivavam, voltaram ao adiamento de sempre… Para quando?...


Dos que o conheceram no início da sua vida – começou-a cedo, como disse - poucos sobrevivem como amigos presentes, sinceros. Sempre por perto, indefectíveis compagnons de route, têm acompanhado o Alemão e são verdadeiras testemunhas do seu esforço na execução daqueles deveres trazidos para fazer em casa, e das respostas possíveis que, tantas e tantas vezes sozinho, foi conseguindo dar a todos eles. Deveres-trabalhos próprios e alheios… Tarefas a que nunca se negou, permita-se-lhe a confissão.

 

Chegado aqui, o Alemão sabe bem o significado da oportunidade única que é a passagem do homem pela terra. Percorreu já muito caminho! Quanto ao restante, sempre que possível, faz por seguir o conselho de Séneca: “apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida”. Vive um dia de cada vez, como agora se diz, procurando imprimir um andamento mais moderado ao movimento dos ponteiros do relógio que lhe baliza a existência, para um melhor aproveitamento do consumo da vida.

 

É que ainda há uns deveres “acrescentados” para fazer em casa!... 




sexta-feira, 13 de outubro de 2023



 HISTÓRIA Nº. 101

 

Tristeza!...

 

 "O olhar indiferente é um perpétuo adeus" - Malcolm Chazal


Não será agora, depois de velho, que mergulhará no desconhecido em busca de explicações para os mais recentes censuráveis e preocupantes comportamentos da sociedade a todos os níveis. A idade já não lho permite, naturalmente, aliás, a idade desaconselha-o. Lá atrás no tempo, ainda se esforçou por perceber razões que, sem razão, justificaram tantos desmandos. Não conseguiu nunca grandes resultados. Hoje, muito limitado na sua paciência, apenas observa através da janela que tem virada para a vida, de forma quase indiferente, o mundo que já não lhe diz nada…

 

O Alemão, que tem andado muito calado, achou dever fazer hoje prova de vida perante os seus amigos-leitores. Aos poucos que lhe restam!... É que, “talvez o amanhã não exista, o amanhã é só uma palavra que inventamos para não dizer Adeus”, segundo Jaqueline Teles, expressão que subscreve. Passou a centena de “fanecas” que guarda religiosamente numa enorme canastra onde, milagrosamente, as mantém bem “vivinhas”. Pena que nem todos que por elas passaram os olhos as tenham compreendido totalmente!

 

E “de pedacinho em pedacinho, partimos devagarinho” – citando Doby Augusto. Em fase de plano inclinado (…), o Alemão sente cada vez mais intensa a nostalgia que brota da lembrança de outros tempos (já não diz saudade para não entristecer os seus amigos que chamam a estes despretensiosos textos “desabafos” ou “gritos de alma”)

 

“De pedacinho em pedacinho, o mundo tem levado a nossa alegria.” – O Alemão.




quarta-feira, 20 de setembro de 2023


HISTÓRA Nº. 100

 


“Às vezes não é solidão. É só um tempo necessário para ter uma ideia das coisas e das pessoas”

 


Certamente que, daqui a nada, alguns amigos, escondidos numa qualquer esquina do seu futuro próximo, aguardando a chegada do Alemão ao virar do dia, lhe oferecerão palavras sinceras de felicitações pelo tempo vencido e, sobretudo, pela forma como o venceu. O Alemão não esconderá, como nunca escondeu, que só foi possível porque o seu Pai esteve sempre presente. Ah, se não fora Deus!...

 

Coincidiu com a efeméride atingir o número 100 da coleção de Histórias que foi escrevendo desde 10 de Junho de 2017. Histórias, Desabafos, Gritos de Alma, os amigos-leitores foram qualificando. Mas o importante para o Alemão, confessa, foi descobrir, com os seus escritos, uma forma, dentre outras que sustentou, de manter por perto os amigos que nunca quis perder. Não fez contas, não criou registos, mas dar-se-á por muito feliz se puder contar ainda hoje com todos os que com ele iniciaram e fizeram toda esta caminhada. Cem números de palavras, de muitas palavras!...

 

Obrigado, amigos.

 

Até breve!...    





HISTÓRIA Nº. 99

 


Os detalhes…

 


“Às vezes é preciso parar, desacelerar, fechar a boca, não dizer nada. Ficar sentado em um lugar bem arejado, onde o vento possa bater no rosto e a brisa suave venha refrescar a alma cansada. É preciso ficar olhando por um tempo o céu azul e enfeitado com nuvens brancas como algodão. Ficar assim, sem fazer nada, sem pensar no ontem, nem no depois, e se possível, nem no agora.” – JerClay

 

 

Sem grande disposição, mas com tempo livre, o Alemão tem lido um pouco mais do que se vai produzindo no campo literário em áreas, poucas, que lhe despertam ainda algum interesse. De vez em quando, e hoje foi dia, dessas leituras retém uma ou outra ideia eventualmente atraída por algo em que já pensou e que em si permanece com o estatuto de preocupação relativamente a pessoas que lhe dizem muito: a desenfreada correria humana nestes tempos dito modernos e tão sublimados pela geração que no uso do tempo, todo o seu tempo, em tamanha correria, desaproveita ou intencionalmente ignora, porque não lhe sobra tempo, nenhum do seu tempo, o desfrute de detalhes de valor e significado únicos. Quanta riqueza desprezada!...

 

O Alemão cita, respeitosamente, Alan Lightman: “Eu acho que o e-mail é representativo da nossa mentalidade de fast food nos Estados Unidos, onde tudo ficou mais rápido e mais rápido, e somos obrigados a responder para inserções mais rapidamente com menos tempo para pensamento e reflexão. Acredito que precisamos desacelerar”. Parecer que encontrará, certamente, reflexo em todo o mundo, no momento, infelizmente.

 

Por uma razão pessoal, que prefere não divulgar, o dia de hoje é profundamente marcante para o Alemão. Mas a razão, já de si importante, conheceu medida bem maior quando, de forma inesperada, alguém, logo pela manhã, lhe escreveu uma curta mensagem, mas de enorme significado: “Deus está nos detalhes” – DD.

 

Nunca nos falte tempo para observar os detalhes!... 



segunda-feira, 4 de setembro de 2023


HISTÓRIA Nº. 98

 

     

“Dias escuros sem sorrisos, sem risadas de verdade. Dias tristes, vontade de fazer nada, só dormir.”

Caio Fernando Abreu

 


Sai menos vezes, agora. A agitação das ruas próximas do lugar onde mora há dezenas de anos, criou um ambiente completamente oposto àquele que a sua natureza sempre procurou. Desde o meio da manhã até altas horas da noite, uma espécie de invasão levada a cabo por povos vindos das mais diversas partes do mundo, transforma a pacatez dessa parte da cidade numa babel atordoadora. Diariamente!... A Festa, onde não se alcança o dialeto dominante dos participantes, decorre normalmente solta de ruídos que nenhum sonómetro se atreve a medir. Afinal, trata-se de celebrar a vida… em território alheio!

 

Resignado com a repetitiva situação, por mera curiosidade ainda ouve as longuíssimas dissertações dos opinadores que falam de tudo e sobre tudo (nunca foram tantos!...), destacando e elogiando as apelativas medidas tomadas e que têm conduzido a inegáveis e imediatos bons resultados de tal cosmopolitismo: a sociedade moderna imparável em todo o seu esplendor. Seja!...

 

Espuma dos dias, pensa o Alemão, antes de adormecer, na madrugada já alta finalmente silenciosa. A idade pede-lhe um sono descansado que a vida “lá fora” não lhe permite. Ainda assim, compreende a efusividade de quem tão vivamente celebra a vida, a sua vida.  Mas há de chegar o dia da pergunta sobre o que terá sobrado da Festa!... “E agora José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. E agora, José?” – Carlos Drummond de Andrade.

 

Perdoem o saudosismo do Alemão! Incorrigível…

 

Na verdade, “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…” - Mário Quintana. 




sábado, 26 de agosto de 2023



HISTÓRIA Nº. 97

 


 “Ao amanhecer do dia olhamos para o horizonte com amor. Ao cair do dia olhamos para trás com nostalgia”

Stephan King.

 

Um dia de cada vez, a conta-gotas, bem devagar. Assim vai acontecendo o futuro até que deixe de o ser!… O Alemão assiste curioso a este ininterrupto movimento entre o amanhecer e o crepúsculo de cada concessão de tempo, buscando no intervalo entre ambos um melhor aproveitamento do irrepetível. Sobrevive percorrendo caminhos cada vez mais apertados que a vida ainda lhe consente, evitando avisadamente desafios que já não está disponível para aceitar.

 

“A vida é a perda lenta de tudo o que amamos” – no dizer de Maurice Maeterlinck. E tanto já se perdeu!... Proteger e amar o que resta é missão superior e sublime de quem ainda valoriza o sagrado. Mesmo desconhecendo o tempo do seu futuro!...

 

Há quem descubra nas palavras do Alemão uma latente tristeza, sobretudo quando redescobre momentos do passado, do seu passado. Agora, lida esta pequena prosa, talvez associem essa mesma tristeza a temas sobre o inquietante futuro. Mas a verdade, confessa, é que o sentimento que pensam ter descoberto não é uma incurável tristeza, mas sim uma dolorosa saudade. Saudade de um passado que, naturalmente, não voltará… e de um futuro com que sonhou um dia e que talvez não venha a acontecer!

 

Mas haverá sempre uma palavra de esperança!...


“Tua caminhada ainda não terminou…

A realidade te acolhe

Dizendo que pela frente

O horizonte da vida necessita

De tuas palavras

E do teu silêncio”.

- Charles Chaplin


 

  

sexta-feira, 28 de julho de 2023



HISTÓRIA Nº. 96



E sou já do que fui tão diferente...

 

“E sou já do que fui tão diferente

Que, quando por meu nome alguém me chama,

Pasmo, quando conheço

Que ainda comigo mesmo me pareço.”

- Luis de Camões

 

O que escreve assenta invariavelmente em acontecimentos marcantes do seu passado mais remoto. Vividos em tempos de grande pobreza e sem que ninguém se permitisse expetativas de mudança para melhor no horizonte mais próximo, alguns desses acontecimentos foram de uma riqueza irrepetível. Rebuscar esses momentos não é desconfiar do futuro (valerá a pena confiar?...), é sim necessidade de não esquecer o conseguido no passado.  E sempre que essa necessidade em si se desperta, o Alemão por instantes recupera-os e carinhosamente recria-se no prazer da nobreza dos valores neles descobertos e que lhes conferem estatuto de bens imperecíveis. Um mergulho em águas límpidas, um banho de passado! A alegria de épocas em que se afirmavam e pontificavam a sinceridade, a lealdade, o amor, o respeito. Ah, e o valor da palavra dada! É a esses momentos que se refere, momentos que amou e que ninguém apagará da sua memória. Nem o tempo! Momentos que ninguém, a nenhum título, poderá impedi-lo de reviver sempre que o deseje…

 

As suas simples (simplórias!...) histórias são muito mais do que o alcançável a partir das publicações já acontecidas. Propositadamente, umas vezes oculta matéria na descrição; outras expõe mais alargadamente, mas de forma enigmática. Gritos de alma que não reeditará. Registos únicos para momentos únicos. Saudosismo? Se ser saudosista é valorizar o vivido mais do que o momento que se vive, então o Alemão aceita tal qualificação.

 

“Sou já do que fui tão diferente”, considera hoje o Alemão que, tal como o poeta ontem, olha-se através do irrefutável espelho límpido da realidade. O que vê (ou já não vê!...)  quase não reconhece. Quem aparece do outro lado diz-lhe agora muito pouco!... E não se refere às inevitáveis modificações provocadas pelo avanço etário, mas sim à ausência do que o caraterizou durante uma vida inteira: a determinação que sempre colocou em tudo o que fez. Enfraqueceu!...

  

 

“(…) Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como, e dói não sei porquê.”

- Luis de Camões




domingo, 16 de julho de 2023



HISTÓRIA Nº. 95

 

Partir discretamente…

  

“Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. (…) Vivo a natureza integrado nela, de tal modo que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno.”

– Miguel Torga, Diário II (1943)

 

O Alemão espelha-se no texto que respeitosamente acima reproduz. Ler Miguel Torga é abrir de par em par as portas do passado à enésima contemplação da paisagem que lhe marcou a vida para a eternidade. É sujeitar-se ao despertar de fortes e perturbadoras emoções que o levam ao reencontro dos seus ancestrais e à revisitação de locais que, sozinho, como gosta, tantas vezes percorreu. Saudades, alegrias, tristezas… e sobretudo paz, muita paz!

 

Sempre que podia, evitava os tojos e as giestas, pisava cuidadosamente as urzes e outra vegetação rasteira que, como tapetes coloridos, cobriam velhos caminhos há muito abertos por catadores de lenha e por pastores. Caminhava prazerosamente pelos montes, percorria trilhas, atravessava vinhedos, explorava cardenhos abandonados procurando vida, apenas adormecida, em objetos esquecidos na hora da partida do último morador.

 

O tempo não perturbou a paisagem. O Marão altaneiro assumiu desde sempre o trono que ninguém disputa. Ao longe, nas encostas ou nos vales, as aldeias que o avô Pelão identificava, sem esquecer nenhuma, permanecem pregadas ao chão sobre o qual, carinhosamente, as edificaram, apajeando humildemente aquele incomparável gigante da natureza como se de um juramento de submissão eterna se tratasse.

 

E o silêncio, ó céus, o silêncio criador da paz que sossega o corpo e a alma de quem o procura, o silêncio que dá voz ao vento, às flores, às aves, aos animais, o silêncio que dá voz até mesmo ao pensamento.

 

A vida não cumpriu todos os sonhos do Alemão. Não, não é um lamento. Conheceu o que não projetou, viverá ainda o que lhe estiver destinado. A maior parte do seu tempo viveu-o no meio do bulício de ambientes cosmopolitas. Mas nunca esqueceu nem esquecerá os momentos vividos nos lugares sagrados que agora recordou e que sempre que os procurou lhe proporcionaram a paisagem imutável da natureza que tantas vezes lhe lavou a alma das maldades do dia a dia...    

 

 “Agora,

O remédio é partir discretamente,

sem palavras,

sem lágrimas,

sem gestos.

De que servem lamentos e protestos,

Contra o destino?” 


Torga, M, Diário XIII – Trecho do poema “Adeus”



 





sexta-feira, 30 de junho de 2023




 HISTÓRIA Nº. 94

 


          “É sabido que na infância o tempo não passa, na adolescência demora-se, na idade adulta corre, na velhice precipita-se.”

Rosa Lobato de Faria

 


Cada tempo vivido foi deixando sinais da sua passagem. Descuidadas cicatrizes, mais leves umas, mais fundas e bem visíveis outras, mas todas indeléveis.  “Marcas da vida em relevo”, como bem lhes chamou um amigo de longa data, realçando a dureza de tempos não muito distantes e valorizando a força revelada nas lutas então travadas, nem sempre vencidas. Testemunhos verdadeiros de ferimentos entretanto curados. Será que o tempo cura tudo?...

 

Toda a viagem tem um começo, meio e fim. O Alemão procura discretamente posicionar-se. Vai conferindo atentamente o que o rodeia para melhor caraterizar o momento que vive e, por via disso, considerar ou desconsiderar novas lutas, novos esforços. As cicatrizes desenhadas no seu ser são, na sua maioria, marcas das suas vitórias, das vitórias que Deus lhe concedeu. Arriscar mais cicatrizes, valerá a pena? Num mundo que já pouco ou nada lhe diz haverá ainda espaço para novas conquistas? Acredita que não...   

 

O Alemão, por quem alguém ainda vai perguntando, percebendo como o tempo se precipita, não resiste a transcrever, com a devida vénia, um poema de Mário Quintana sobre a brevidade da vida:

 

“A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…

Quando se vê, já é 6ª. Feira…

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado…

E se me dessem -um dia- uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.”

 

Parece uma renúncia, uma desistência, mas não é, garante o Alemão. Não se desiste do que se ama. Será, quando muito, um reposicionamento face ao “tempo que se precipita” e ao que ainda deseja fazer, se Deus o ajudar: o avivamento da sua galeria de notáveis onde “nunca ninguém morre, só quem nós matamos na memória, no pensamento e no coração” – Rosa Lobato de Faria.




 

 

sexta-feira, 9 de junho de 2023



HISTÓRIA Nº. 93

 

O que fizeram do homem, da vida, do mundo?...

 

Palavras que ninguém ouve porque não as diz. Gestos que ninguém vê porque não os faz. Olhares que ninguém interpreta porque são vazios. Ausência de expressão, a invisibilidade possível. Imobilismo que contraria a vida. Um manto de aparente quietude cobre os caminhos que já não percorre. Excesso de paz que não tranquiliza, sossego agitado, como quem dorme e não repousa. Nada acontece!

 

Sucedem-se os dias sem que deles espere o que já não sonha. Sempre que o fez, sem a presença de pesadelos, reuniu material que lhe permitiu antecipar um futuro que afinal não chegou. Em seu lugar veio outro, o que não projetou… Ao contrário do que alguém disse, o sonho não comanda a vida!

 

No tempo em que se atreveu a ter voz não foi ouvido. Era previsível o aparecimento de encruzilhadas a dificultar escolhas..., felizmente, até hoje, por indicações superiores, acertadas. Mas mais dificuldades surgirão. O resto (que resto?!...) do caminho, cuja estreiteza se acentua cada vez mais à medida que nele se avança, prenuncia exigências de firmeza e de fé como garantias de superação.

 

O que fizeram do homem, da vida, do mundo? “O mundo já caiu, só me resta dançar sobre os destroços” – (Clarice Lispector). 




terça-feira, 23 de maio de 2023




 HISTÓRIA Nº. 92

 

 

Que pena, já ninguém se entende!...

 

 

Foi sempre de poucas falas, mas a verdade é que nunca lhe faltaram palavras, muitas palavras que sempre procurou segurar, por antecipar a ausência de um resultado positivo junto de quem (não) as ouvisse. Sim, é verdade, de quem (não) as ouvisse! Reservado, faltou-lhe quase sempre a vontade de expor os seus pensamentos, os seus pontos de vista, os seus argumentos. Interpretar com verdade o Alemão nunca será tarefa fácil para ninguém!...

 

Houve sempre quem fosse mais afoito, mais falador. Mas o tempo, grande Mestre, acabou por dar-lhe razão em matéria de discrição. Tantas e tantas vozes poderosas se levantaram, cada uma em tom mais audível do que as outras, num areópago desordenado, descontrolado, procurando-se pela gritaria abafar definitivamente a múltipla concorrência. Tanta oferta para tão pouca procura!... Que pena, já ninguém se entende!

 

Poucos conhecem as posições do Alemão no imenso palco da vida. Percebe-se, todavia, que prefere a doce linguagem que surge dos silêncios que frequenta e que lhe sossegam, talvez excessivamente, o seu dia a dia.

 

Deixem-no por lá, em paz!...



 

sexta-feira, 5 de maio de 2023



HISTÓRIA Nº. 91

 

“Quando me viam parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios”.

(Mia Couto, in “Antes de Nascer o Mundo”)

 

Ler Mia Couto é como desfolhar um volumoso álbum de velhos retratos de família, de nós mesmos. É arriscar o despertar de saudades adormecidas e ter de lhes sentir a dor aguda do que se viveu e se amou até que sosseguem de novo. Memórias a preto e branco ou sépia de gente e de vidas intensamente coloridas. O passado que poucos valorizam, mas responsável ainda hoje por muito do que sobrevive.   

 

Noventa e um despretensiosos escritos, mais uns quantos intencionalmente não numerados, revelam algumas caraterísticas do Alemão que amigos de longa data e gentis leitores bem conhecem. Também ele utiliza palavras como “recatado, recanto, quietude, silêncios” que, mais do que recursos de estilo de que tantas vezes se socorre nos simples textos que compõe, são uma espécie de marca que o identifica e lhe dá indubitável presença, traços indeléveis de uma personalidade facilmente reconhecível, vincada profundamente ao longo do tempo vivido. “Uma vida inteira desempenhado, de alma e corpo ocupados” …

 

O passado, o bom passado, há de estar sempre presente na vida do Alemão, fazendo jus ao título do que escreve desde o primeiro número: “História”, embora nem sempre o seja. Em muitos casos, apenas desabafos. Alguns enigmáticos, outros nem tanto. Escreve para si... “Velho não. Entardecido, talvez. Antigo, sim” – Mia Couto, in “Idades cidades divindades”.

 

Afinal, “de que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem?” – Mia Couto, in “O fio das missangas”.

 

    

terça-feira, 18 de abril de 2023



 


HISTÓRIA Nº. 90

 

 

“Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações…

Hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se, viver sua existência autêntica, integral, do nascimento à morte, muito breve, sem borboleta nem abelha de permeio. Uma existência total, no seu mistério.

(E antes da flor? – Não sei.) Esta ignorância humana. Este silêncio do universo. A sabedoria.”

 

(Meireles C., Compensação)

 

 

 

Dos que o viram crescer, muito poucos sobrevivem. Estes confirmarão, certamente, a notória inclinação para o silêncio e para a solidão que desde sempre deixou perceber. Uma espécie de eremita num qualquer deserto deste mundo. Formas de estar, silêncio e solidão, mais assumidas do que impostas, ainda hoje colunas sustentadoras do seu edifício pessoal. Há quem veja nisto uma queda para a tristeza crónica, vício doentio: outros a negação da própria vida tal como a definem alguns sociólogos. O Alemão, socorrendo-se de um autor anónimo, garante que “o silêncio e a solidão nunca lhe ensinaram tanto sobre as pessoas e sobre si mesmo”.

 

Casualmente, tal como a insigne escritora Cecília Meireles, o Alemão “hoje quis ler uns livros que não falam de gente”. E descobriu uma pérola literária, o texto que com a devida vénia acima reproduz. Escrito no século passado no contexto de determinada realidade, terá ganho estatuto de contemporaneidade. Há de ser sempre atual!...

 

Num tempo como o que se vive, percorrer “as solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações…” é ir de encontro a uma paz consistente, autêntica. É essa paz que o Alemão tem perseguido pelos caminhos da sua escolha de sempre: silêncio e solidão. Mesmo que muitos não tenham ainda entendido!...

 

“Hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se… “




sexta-feira, 24 de março de 2023




 HISTÓRIA Nº. 89

 


“Quero sempre poder ter um sorriso estampado em meu rosto, mesmo quando a situação não for muito alegre… E que esse meu sorriso consiga transmitir paz para os que estiverem ao meu redor.”

Mário Quintana

 

Nos seus tempos livres, cada vez mais raros, aproveita para ler um pouco, prosa ou poesia, revisitando alguns dos seus autores favoritos. Do que leu hoje, reteve o que acima e abaixo transcreve com a devida vénia e que lhe libertou os pensamentos ultimamente tão aquietados por uma persistente e preocupante apatia. Viajou, então, nas asas do tempo, sentindo-se levado de encontro à figura franzina do infante Alemão, menino sonhador, de sorriso constante, puro, natural. Que sempre amou a paz e por ela pagou -e paga ainda hoje- faturas muito elevadas.

                                                                                

                                                                                            Recordo ainda... E nada mais me importa
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta....

 

Acreditava na bondade, na sinceridade, no amor, no respeito, na lealdade, e em tantos outros valores, como bens trazidos à nascença e destinados a durar uma vida inteira em cada ser. Que ingenuidade! Cedo percebeu, ainda nos tempos da adolescência, que determinados valores são apenas exigíveis aos outros…

Mas veio um vento de desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

 

Esperava chegar aos dias de hoje e gozar a tranquilidade de uma sociedade construída e assente sobre bases duradouras de um indestrutível humanismo. Lamentavelmente, observa o contrário; não há muito a fazer pelo mundo!...

 

Estrada afora após segui... Mas ai,
Embora idade e senso que aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:

 

Eu quero meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente! ...

 

QUINTANA, Mário. Poesias.

 

 

Pelo menos, o Alemão procurará manter o sorriso que transmita paz!...