sexta-feira, 27 de dezembro de 2019



HISTÓRIA Nº. 58


Acoste o seu barquinho...


A parcialidade em tanta informação. A opinião pessoal que pretendem inculcar no outro como sendo A Verdade, a única. A crítica tendenciosa. A insinuação habilidosa, perversa. A história deliberadamente mal contada, distorcida. O descontrolo emocional na discussão da dama que se defende. A desfocagem do que é essencial. E muito, muito mais, a nausear o dia a dia do Alemão. Toda esta desinformação, que despreza, obriga-o a navegar à vista. Junto à costa, que já não é tempo de enfrentar o mar alto. Talvez seja até o momento de acostar definitivamente … Oxalá, em algum porto seguro!


A este propósito, o Alemão lembrou-se dos conselhos que, em ocasiões de confusão no passado, recebia de uma ilustríssima senhora, infelizmente já desaparecida, e em que pontificava esta imagem: “acoste o seu barquinho por um tempo”. O olhar arguto da amiga Conceição, assim se chamava, percebia que o mar estava excessivamente ocupado por embarcações de maior porte e que, do alto das suas amuradas, desprezavam os simples e fracos “caíques” a quem disputavam o espaço. O perigo não vinha do mar em si mesmo, mas sim das manobras dos grandes. Que partiam logo que atingidos os seus objetivos. Com o regresso da calma lá vinha o conselho libertador: “faça-se de novo ao mar, mas vá sempre junto à costa…” Até ao próximo retiro, concluía o Alemão. E foram muitos ao longo dos anos.


De retiro em retiro o Alemão tem sobrevivido. Atentamente, tem mareado por onde nem sempre vê observadas as regras de segurança por todos os que com ele se cruzam. O “caíque” é velho, mas ainda flutua. Remada após remada, em lento avanço que evidencia já muito cansaço, navegando junto à costa, lá vai cumprindo a sua vida. Como lhe é permitido. Dentro do possível, como lhe recomendaram.


Até ao próximo retiro…





sábado, 21 de dezembro de 2019





HISTÓRIA Nº. 57



O mundo é dos espertos…



Mentiras, ofensas, traições, humilhações, desconsiderações, desrespeitos…. Tanta matéria facilmente memorizável e que os seus autores geralmente não lembram. “Fui eu?”, perguntam incrédulos quando interpelados. “Pode lá ser, eu nunca faria uma coisa dessas”, inocentam-se. Memória curta? Consciência cauterizada? Espaço cerebral programado em estranho bloqueio para o que não vale a pena registar?  


O outro, coitado, já quase não existe. Se lhe concedem por momentos a existência, ao outro, algum interesse estará a isso subjacente. Desconfie-se. Existência soluçante, como se o mundo lhe desse, ao outro, apenas um pequeno espaço de aparição, de tempos a tempos. Para ser gente, pois então, mas sem protagonismos. É que o papel principal já tem dono…


Ontem, quando regressava a casa de mais uma viagem a Lisboa com o meu amigo de muitos e muitos quilómetros, através da visibilidade reduzida que a chuva abundante e persistente da Elsa provocava no para-brisas, o Alemão vislumbrou, mais uma vez, um dos lados mais negros e mais lamentáveis da vida: o egoísmo. Trezentos e poucos quilómetros de caminho deram-lhe algum tempo para referenciar muito do que não deveria acontecer em sociedades que se autoproclamam justas e preocupadas com o outro. Palavras, muitas palavras, mas só palavras… Os sofrimentos, esses, eternizam-se. “Só acontece aos vivos”, pareceu-me ouvir o amigo Alfredo cujo verbum realista e sempre oportuno recordo inúmeras vezes…  


Realmente, o mundo é dos espertos…



segunda-feira, 16 de dezembro de 2019






HISTÓRIA Nº.56



O tempo não está a ajudar…



Mais um inverno que se antecipou ao calendário. Uma frente fria vinda sabe-se lá donde, trouxe consigo densos nevoeiros, chuvas copiosas, queda acentuada da temperatura, ventos fortes, agitações marítimas, inundações. Enfim, calamidades...


Será das alterações climáticas cujas razões têm vindo a preocupar a humanidade e a promover tantas manifestações, passeatas, reuniões e mais reuniões, com vista a levar os homens do poder à implementação de medidas salvadoras do planeta? O Alemão, que sabe muito pouco sobre o assunto, limita-se a constatar: de facto, o tempo não está a ajudar…


Este Dezembro frio e chuvoso lembra ao Alemão os Invernos por que passou. E já foram muitos. A dureza de alguns deles sentiu-a mais na infância e na adolescência, ao longo da segunda metade do século passado. Junto aos amigos de então, companheiros de pobreza e de alguma miséria. Mas sempre solidários, até no pouco que dividiam generosamente. Pouca roupa, sapato furado, pão duro, ausência de aquecimento nas pobres casas que habitavam, onde tantas vezes chovia mais dentro do que na rua, escola e trabalho longe do local onde habitavam e cujo percurso faziam sempre a pé… Que sofrimento! Mas a vida não parou, foi-se cumprindo, apesar de tudo, com mais ou menos ânimo, com mais ou menos alegria, sobretudo com determinação. E sem queixas…


Até hoje, todos os Invernos passaram. E os que vierem passarão, também. Quem viver o comprovará. Embora preocupado com as alterações climáticas, que não desvaloriza, o Alemão sofre mais, perdoem-lhe, com a desumanização, o egoísmo, a hipocrisia e seus inerentes interesses, que têm vindo a destruir no mundo o que nele mais deveria ser preservado: o amor.


Quantas alterações no mundo!...





segunda-feira, 18 de novembro de 2019





HISTÓRIA Nº. 55



O Alemão emudeceu, definitivamente…



Construiu-se em silêncios a que não pôde nunca dar voz. Quantas vezes o desejou fazer, mas diversos medos lhe tolheram essa liberdade. Os medos de ferir, de melindrar, de magoar e, sobretudo, o de errar… lhe emparedaram o caminho apertado que percorre desde sempre. Também a sua timidez não ajudou em muitas ocasiões, colocando-o sempre em desvantagem perante poderes alheios que nunca ousou desafiar. Sempre muitos e fortes, estranhamente. Tudo isto em nome do bem-estar dos outros.


Palavras contidas e retidas uma vida inteira. Conhece-se o suficiente para afirmar que nunca as dirá. Sempre preferiu a insinuação didática. Que resultou em alguns, diga-se. Mas que o egoísmo e ambição de outros preferiu ignorar ou reverter a seu favor. O simples esboço de algum gesto mais defensivo foi tido como arrogância, convencimento ou uso abusivo de um direito que nunca lhe permitiram exercer: o de gozo e de direção da sua própria vida. A velha história do “preso por ter cão…”.


O Alemão emudeceu, definitivamente. Cansado das limitações impostas por uma sociedade que sempre o sujeitou, ou pretendeu sujeitar, tem procurado ultimamente descobrir espaços de paz compatíveis com cada momento da sua vida. Em nome do seu bem-estar, se ainda for a tempo…, mas sem rejeitar o que de importante, e vindo de longe, lhe enriqueceu e enobreceu a existência.


Descansem. Os amigos sabem que não foi nem prata nem ouro…






segunda-feira, 28 de outubro de 2019









HISTÓRIA Nº. 54




Não se regressa ao passado…




O Alemão está confuso. Encorrilha a testa, esforça o olhar. Tenta encontrar o seu mundo, aquele em que viveu até há pouco tempo.  Mas não reconhece o que vê. “A visão já não é o que era”, dir-lhe-ão em jeito de conforto, mas a que ainda tem é suficiente para que perceba o que o rodeia. O seu mundo já não existe! Como quem volta de um desmaio, o lapso de tempo entre a visão e a perceção leva-o à interrogação: “onde estou, o que aconteceu?” Adormeceu com uma realidade, acordou com outra que não lhe diz nada… Uma espécie de “regresso ao futuro” onde nunca esteve, lembrando-lhe a ficção cinematográfica que tantas vezes o encantou no passado. Já agora, em que época estará?


A brusquidão e o descontrolo das mudanças desgostam-no e, pior, assustam-no. O Alemão desconfia que os ventos que animam a agitação atual resultam de terem sido consideradas dispensáveis certas etapas de ligação ao futuro. Por isso ignoradas. Desprezaram-se fundamentos importantes, comprometendo-se a normalidade do caminho… e do caminhar. Tanta pressa de alguns em chegar não se sabe bem onde! Tanta ambição.! Tanta ultrapassagem desnecessária e arriscada para todos! Tanto tempo perdido! Tanta infantilidade, enfim!


Voltar atrás. Refazer o trajeto. Percorrer agora os caminhos desprezados. O Alemão sabe que é tarde. E dói-lhe a alma por isso. Não se regressa ao passado. Só na ficção… Mesmo assim, como desejaria o Alemão que neste futuro tão à pressa desenhado fosse enxertado algum do material intemporal descartado que lhe desse esperança quanto a dias melhores! O Alemão adormeceria com a realidade que não conhece e acordaria com outra em que reconhecesse de novo o seu mundo em normal evolução.


Que bom seria!...




terça-feira, 8 de outubro de 2019











HISTÓRIA Nº. 53




Verdade seja dita…
           

      
                             “Vento que passas, leva-me contigo. Sou poeira também, folha de outono” Miguel Torga, in Diário V



Agora mesmo, e a respeito do trecho acima transcrito, o amigo Herculano lhe escreveu: “O cair das folhas… será sinal de decadência? Para uns, beleza. Para outros, tristeza”. Palavras que surpreenderam o Alemão no meio de uns quantos pensamentos…


Verdade seja dita: nunca ninguém lho exigiu. Nem pretende aqui qualquer justificação. Dividiu-se muitas e muitas vezes. Desde a adolescência. Ao longo dos anos. O quase dom da ubiquidade que em tantas ocasiões a muitos surpreendeu fê-lo chegar, quase simultaneamente, a inúmeras pessoas e a terras tão diversas. Perto e longe. Sem reservas, sem escolhas, sem negações, sem paragens, sem queixas. Sobretudo, com alegria. Percorreu a vida vigorosamente. Até aqui…


Chegou, porém, a um insuportável cansaço. Cansaço que a perda normal de alguma energia consumida pela idade não explica. Pelo menos não o convenceu, ainda. O Alemão olha à sua volta e questiona: o que tem acontecido na chamada dinâmica da vida em movimento? Inevitáveis mudanças, naturalmente. Porém, na maioria dos casos, tudo tão fantasioso, tão ilusório, para lhe não chamar algo bem pior. O mundo artificializou-se. O verdadeiro, o autêntico, deixou de ser suficiente, provocando uma inquietação que já ninguém consegue controlar.


E tudo isto cansa, ou também cansa, atingindo novos e velhos, que alguma vez na vida ouviram e amaram a mensagem que ainda hoje lhes disciplina a existência:


 “A minha graça te basta!...”, disse Deus.






sexta-feira, 20 de setembro de 2019







HISTÓRIA Nº. 52



Agradecimento sentido…



Porto, meados do século passado. Setembro, fim de verão, quarta-feira 21, 8,00 da manhã. Nascia o Alemão. Começava, então, a sua aventura de viver. E viveu tanto que tem dificuldade em eleger, entre o bom e o mau, o que mais o terá marcado ao longo das dezenas de anos que lhe pesam nos ombros!


Hoje, uma dolorosa nostalgia perpassa-lhe a alma. Passou muito tempo. Tempo demais. E já não é cedo. Pelo contrário, é tarde, muito tarde. E tanto vai ficar por fazer!...


As zero horas do dia que lhe arredondará a contagem da vida chegarão em plena estrada entre Lisboa e o Porto, no regresso de mais uma missão. Junto, como sempre, o leal amigo de muitos quilómetros Carlos Figueiroa. Em casa, madrugada dentro, aguarda-o a primeira celebração do dia imposta pela necessidade de uma simples ceia.


O Alemão quis, desta forma simples e apressada, antecipar-se aos amigos. Já teve muitos. Alguns perdeu-os sem saber porquê, embora a todos quisesse manter por toda a vida. Mas muitos outros têm estado sempre por perto. A estes, aos sinceros, o agradecimento sentido do Alemão. Por serem seus amigos.


21.Setembro.2019





domingo, 8 de setembro de 2019








HISTÓRIA Nº. 51



Dói por ser saudade…



O Alemão envelheceu. Parou de viver... ou para viver, finalmente. Sentado num desconfortável banco de um imposto conformismo, assiste, agora, ao passar do tempo, castigado, ainda, por um sol que lhe não é saudável nem desejável. As sombras, essas, estão todas tomadas por quem ainda pode circular. Egoísmos! Cansado de uma vida de curvas e de contracurvas. Condução desgastante por caminhos secundários. Que as autoestradas da vida não são para todos! Por isso as não conheceu. Que estranha sensação de uma vida desaproveitada… ou que alguém aproveitou!


Para o Alemão nem sempre é doentio o mergulhar no passado, no seu passado. Quer se queira quer não, ele sempre estará presente, quanto mais não seja naquilo a que se chegou. A semente é o começo… E há dias em que revisitar alguns dos que já se foram é como que beber um tonificante que permite sobreviver numa época tão estranha como a atual.


Na galeria virtual dos retratos que conserva algures dentro de si, o Alemão revê a imagem de gente que circulou por estradas bem piores que aquelas e viveu sem sombras protetoras, ano após ano, castigada por um sol violento, injusto, inclemente. Fotos a preto e branco de homens e mulheres que, apesar de tudo o que sofreram, faziam questão de ser exemplares na sua entrega à vida que amaram. Que conforto na observação de cada rosto onde pontifica, comum a todos, um porte firme e um doce e tranquilo sorriso! Não é fotogenia resultante de “olh’ó passarinho”, não. É a pura expressão da felicidade sentida por cada um deles. O Alemão conheceu-os e sabe qual a razão daquela felicidade.


Manhã de domingo. Setembro vinhateiro. Calor pouco habitual. Condimentos de um alimento de saudade que dói por isso mesmo: por ser saudade. 






sexta-feira, 23 de agosto de 2019








HISTÓRIA Nº. 50



Assim Deus o ajude!...



Por onde anda o Alemão, que ninguém o vê? Pergunta-se por aí insistentemente. A verdade é que, nesta sua ausência, nunca esteve tão presente…. Acreditem.


Cinquenta fanecas morderam o anzol desde 2017. Cozinhou-as e serviu-as carinhosamente. Bem passadas, malpassadas, alimentou-se com contos e desabafos escritos que doutra forma dificilmente tornaria públicos. Mas, de há uns tempos a esta parte, o mar deixou de estar para peixe… Quem sabe se num destes dias um novo cardume passará por perto, nos baixios deste mar em que se encontra mais ou menos atolado. O Alemão não desaproveitará a oportunidade, promete. 


O Alemão tem andado por aí a fechar caminhos velhos da sua vida, inúteis, intransitáveis. Para abrir caminhos novos? Não, não. Há muito percebeu ser esse trabalho uma perda de tempo. Já não vale a pena. Por diversas razões, dececionantes razões. Mantém abertos apenas os que lhe são suficientes para o resto da viagem. Assim Deus o ajude!...   


Aquela trabalhosa e delicada tarefa tirou-lhe tempo e, garantidamente, diminuiu-lhe o já pouco engenho e a arte nesta coisa de escrever para si mesmo e que outros, gentilmente, sobretudo amigos, foram lendo. Reconhece que o descanso que já há alguns anos não prescreve a si mesmo lhe é agora imposto pela própria vida. Ninguém é de ferro. Afinal todos merecem parar um pouco. “Vá descansar uns dias”, recomendaram-lhe ultimamente alguns amigos, de forma insistente.  O Alemão sempre sorriu perante tão bondosa sugestão. E recorda a expressão de um bom amigo que já não está por cá: “alguém tem que trabalhar!”


O Alemão voltará, assim Deus o ajude.









segunda-feira, 3 de junho de 2019







HISTÓRIA Nº. 49



Uma flor para todos os “outros” …



“Daqueles tempos tenho apenas memórias cinzentas”, disse a simpática senhora para alguém a seu lado, enquanto servia o cimbalino despertador ao Alemão. Em português correto, mas com sotaque. Deu para perceber que falava dos anos 80 do século passado e sobre uma região distante, possivelmente a terra onde nasceu. Tom de voz calmo, mesmo doce, revelador de um conformismo próprio de quem acha ter nascido para sofrer e, por isso, sem a possibilidade de evitar as dores e mais dores que lhe acinzentaram a vida. Terminado o cimbalino da manhã, o Alemão saiu do pequeno recinto pensativo. O conhecimento da História recente levou-o ao lugar onde ocorreram os fatos sugeridos e que marcaram indelevelmente a vida daquela angélica criatura. Passaram-se já muitos anos. Com eles tanta modificação no mundo. Quem infligiu aqueles sofrimentos na sua maioria já não existe. E os que ainda existam, saíram de cena incógnitos e possivelmente vivendo o resto dos seus dias tranquilamente. Tranquilamente?!...


Memórias cinzentas, expressão que emocionou o Alemão e o levou a recuar até alguns momentos-situações que gostaria de nunca mais lembrar. Não conseguiu, porém, impedir tais recordações. Foi-lhe impossível não ver algumas figuras que marcaram pela negativa a sua vida. Uma boa parte já nem vive. Paz à sua alma! Outra, inteligentemente e antes que as coisas se complicassem, afastou-se dos palcos que tanto frequentou, “saindo de fininho”, para viver o resto dos seus dias tranquilamente. Tranquilamente?!... Outra, resistente, ainda pulula por aí exibindo-se como portadora de uma moralidade inatacável que a faz viver em paz. Em paz?!...


Impressionante como o egoísta usa a interlocução do “outro”. Este somente existe para dar cumprimento a ambições e projetos cuja concretização interessa apenas àquele. Tem sempre razão, está sempre certo, o egoísta. A água tem de correr sempre na sua direção, única direção. E o que não der certo há de ser sempre por culpa do “outro”.   


Memórias cinzentas, bruma espessa que somente uma Luz Poderosa atravessa de modo a fazer o Alemão compreender porque é que o passado ainda dói, mas não o impediu de caminhar até ao dia de hoje. “Se o Deus de meu pai, o Deus de Abraão, e o temor de Isaque não fora comigo, por certo me enviarias agora vazio” (Genesis, 31).





segunda-feira, 20 de maio de 2019









HISTÓRIA Nº. 48



Passeios pelo campo…




Terá morrido de pé como todas as árvores. Nogueira centenária, enorme e majestosa, sobressaía dominadora do meio de um vasto campo que sempre pareceu abandonado e que confrontava com um caminho de cabras (pelos montes não faltam caminhos!) que levava a Poiares. Uma espécie de necessidade de afirmar a sua pequenez confrontando-a com aquele gigante da natureza habituou o Alemão a uma diária peregrinação, quase religiosa, sempre que por ali andava. Mas já não existe, aquela que foi grande. Removeram-na, reduzindo-a, certamente, a pedaços facilmente transportáveis, deixando apenas sepultado algum pedaço das suas raízes mais profundas... que nunca mais brotarão da terra. Levaram a imponência que enchia o quadro daquela paisagem duriense. Única. Aquele caminho já não é a mesma coisa…



A peregrinação tinha outros santuários: os cardenhos de xisto que o Alemão conheceu, desde sempre, abandonados, cobertos por silvas (amoreiras-silvestres) carregadas de generosos frutos que, muitas vezes, terminavam em açucaradas sobremesas. De vez em quando, como que agradecidos pela única visita que ainda recebiam, punham a descoberto alguma relíquia que, assim, poupavam ao eterno esquecimento: alguma chave enorme, enferrujada, escondida por entre as pedras junto à fechadura e que alguém ali deixou ao sair pela última vez…; ou alguma lamparina oxidada, esquecida da sua última luz… Mas, verdadeiramente inesquecível, o silêncio quase absoluto sobre aquele campo sagrado, que nem os sardões, lagartixas, coelhos bravos, lebres e tantos outros seres daquela riquíssima biodiversidade ousavam perturbar.



De longe a longe, um “bom-dia lhe dê Deus” da boca de alguém cujo rosto se escondia no meio do molho de lenha acabada de apanhar num dos montes vizinhos e que, pendendo para todos os lados, quase lhe cobria os pés. “Obrigado, Deus abençoe”, retribuía o Alemão evitando referir o género (seria homem?... Seria mulher?...), olhando com admiração o trajeto-movimento daquela criatura que, sem queixumes, carregava tão grande e pesado fardo. E que ainda falava de Deus!...





quarta-feira, 15 de maio de 2019






HISTÓRIA Nº. 47



Há dias e dias…



Há dias assim... Pesados, perturbadores, trazendo-nos uma estranha sensação de culpa por todos os problemas do nosso pequenino mundo. Pelo que não fizemos, pelo que não dissemos e, sobretudo, pelo que não previmos. Uma acusação de incompetência nos amassa até ao pó da terra como se não merecêssemos levantar a cabeça em cumprimento da mais simples ambição de respirar um melhor ar, uma melhor paz…. Dura punição!


O esforço de uma vida só é enaltecido no momento da glória alcançada - se alcançada!... Para muitos, existe tal reconhecimento apenas no que satisfaz. O caminho percorrido ou a percorrer dificilmente merece apreciação positiva. A pressa de chegar desvaloriza a beleza e o valor de cada passo. Justa ou injusta, a vida é isto mesmo. Entre os homens, o prémio do esforço sempre dependerá do resultado: a glória ou o esquecimento!


O Alemão deseja que o peso deste dia passe rapidamente. Quem sabe, talvez amanhã a leveza do novo dia perpasse por todos os lugares do nosso pequenino mundo. Afinal, nem todos os dias são iguais!...






terça-feira, 2 de abril de 2019









HISTÓRIA Nº. 46



A solidão da liberdade…



Que saudades do orvalho das manhãs, do cheiro da terra, do ar puro de Vila Seca! Corria pelos montes pisando caminhos que ele próprio criava ao passar. Menino amante da liberdade em solidão. Os tojos arranhavam-lhe ferozmente as pernas franzinas que os calções de então não protegiam. Ferimentos que não lhe esmoreciam o ânimo quanto a passeios futuros. Nem a ameaça das abelhas que o perseguiam e que tanto temia o afastavam daquele desígnio. Tojos e abelhas, defensores heroicos do seu território, inimigos campestres do pequeno intruso, nunca prejudicaram o seu amor àquelas terras onde era feliz, embora só. Ali o Alemão era livre! Qual o custo? Meia-dúzia de arranhões e algumas ferroadas que recursos naturais ou mesinhas ancestrais resolviam de um dia para o outro.


Nos dias de hoje vivem-se momentos de grande perturbação. Sociedade que compromete a liberdade do homem, limitando-o em tudo, até, mesmo, na prática do gesto mais simples: o de dar a mão. Mundo profundamente doente onde intervir para pacificar é arriscar-se a ser mal-entendido. Lugar de vida onde prospera a desconfiança e o egoísmo reina. Cada um por si!…


“Não se exponha Alemão”, aconselha a sensatez que lhe prescreve o silêncio e acentua-lhe a solidão… sem liberdade.


Que saudade do orvalho das manhãs!...





domingo, 17 de março de 2019






HISTÓRIA Nº. 45



Os domingos de manhã…



A verdade é que sempre sentiu dificuldades em entender-se com este mundo. Por descobrir, ainda, e agora apenas como curiosidade, quem rejeitava quem?!...  O Alemão teve de ser homem muito cedo. Cresceu sozinho, sem pai, quase sem crianças - amigas por perto, lutando timidamente pela sobrevivência, num mundo de gente grande. Tempos difíceis. 


Os bons ensinamentos ouvidos aos domingos de manhã mantiveram-no “inocente e puro” durante muitos e muitos anos. E ainda bem! Está grato aos homens simples que lhe transmitiram tão nobres sentimentos a partir dos conselhos e exemplos amorosamente distribuídos. Por isso, foi sempre com a radiosa alegria da criança que abraçou cada patamar da vida a que chegou no desenvolvimento da sua existência. Alegria que partilhava sem reservas, por acreditar na bondade como qualidade comum a todos os homens…


Somente há pouco tempo, o Alemão percebeu ter desenvolvido dentro de si outro mundo em nada coincidente com aquele que contempla no seu dia a dia. Dolorosa descoberta!... A conciliação destes dois mundos é meramente aparente, confessa. O conflito subsistirá pelo tempo fora… Já é tarde, muito tarde, para qualquer ajustamento!


O meu mundo é mudo, confirma o Alemão. 






quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019




HISTÓRIA Nº. 44
 


Valha-nos Deus!...



Posto em sossego, o Alemão preparava-se para consumir mais um dia. Uma quarta-feira de fevereiro, do ano da graça de 2019. Da varanda do seu escritório doméstico observava as caretas que o tempo fazia, a fim de decidir sobre os artefactos que devia, ou não, levar consigo quando, pouco depois, saísse para a rua. E pensava, pensava muito até à dor de cabeça, sobre o momento atual da humanidade. Em sua modesta opinião, acha que o egotismo se tornou cada vez mais o grande suporte da prática de atitudes em que os mais poderosos desprezam e, no limite, anulam os mais fracos, reduzindo-os a uma verdadeira inexistência visível aos olhos de toda a gente. Que pouco ou nada faz, cúmplice de desigualdades cada vez mais acentuadas. A todos os níveis. Para onde caminha o mundo?


Há gente que não existe, ou quase. Porque não lho permitem. E quando existe, existe somente para aproveitamento dos outros. Sempre que a estes convém. Lamentavelmente, em jeito de põe e dispõe, os poderosos deste mundo lá se vão movimentando, tirando partido de um abusivo autoritarismo apenas consentido e suportado pelos mais fracos como preço da paz. E como fica cara, essa paz!...


De repente, o toque eletrónico de uma mensagem acabada de chegar interrompeu os seus pensamentos. Dizia: “Uma fraquezazita para Deus não é nada quando comparada com o maquiavelismo que certas pessoas têm no coração, só que como o que se sente não se vê nem se ouve, alguns seres humanos dissimulados passam por maravilhosas pessoas!..”


Maquiavelismo e dissimulação. Duas faces de uma mesma moeda. Males que vão empurrando o mundo para lugares cada vez mais escorregadios.... Afinal, não é só o Alemão que, desde há algum tempo, tem pensamentos pessimistas. A amiga da mensagem, otimista por natureza, já não anda longe…



Valha-nos Deus!





quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019







HISTÓRIA Nº. 43



Ver, ouvir e calar…



Que desilusão! O mundo do Alemão transformado num imenso parlatório, confuso, sem regras. Que grande algazarra!  Todos falam, simultaneamente. Ninguém ouve ninguém. Palavras e mais palavras. Com peso, mas não previamente pesadas. O importante é falar. O outro – sobra sempre um ouvidor! -, é simplesmente… o outro. Que ouve e cala. Que sofre. O importante, pelo visto, é o alívio de quem diz o que quer, como quer e quando quer, sem medir consequências. Tempo estranho, este, em que todos sabem do que falam!... Saberão?!...


“Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”, lembra-nos a vox populi, sempre atual. Ultimamente, do nada brotou um descontentamento descontente, inexplicável, doentio, irritante, com afetações negativas no comportamento de muitos. Lamentavelmente, despreza-se, agora, o que durante muito tempo da vida foi verdadeiramente essencial. Outras prioridades ou preferências se afirmaram no painel indicativo dos objetivos pessoais. Pena que a sua concretização conduza, inevitavelmente, a um outro mundo. Que já está por aí...


Observador e ouvidor, o Alemão percebe a inquieta movimentação do mundo que chama “seu” e de que tanto se orgulhou através dos anos da sua já longa vida. Vê, ouve e cala. Não porque tenha perdido a voz, não. Mas porque aprendeu que, como dizia um sábio popular do século passado, “em boca que cala não entra mosquito”.  E há tempos em que, perante os sabe-tudo da vida, o silêncio é a melhor atitude.








segunda-feira, 28 de janeiro de 2019





HISTÓRIA Nº. 42



O fim antes do fim…



Janeiro, segunda-feira, 10 horas. Nem chuva nem sol. A breve saída para o costumado cimbalino da manhã. Um olhar sobre o movimento na rua. A mesma gente. O regresso a casa, sem um único “bom-dia”. E tanto para fazer, ainda! Mais um dia triste…


Os caminhos labirínticos da vida fizeram-no perder muito tempo. Desgastaram-no precocemente os constantes avanços e recuos em busca de saídas que, felizmente, com maior ou menor dificuldade, sempre encontrou. Mas teria dado muito jeito um caminho mais linear. Menos cansativo, pelo menos.


Percebe, porém, que, à frente, se perfilam novos desafios, com cara de serem mais difíceis do que os que já levou de vencida. A perspetiva é a de entrar em um outro labirinto que dificilmente cumprirá… “Lugar aos novos”, já se vai ouvindo, “e que sejam muito felizes”, deseja-lhes o Alemão. Por isso, talvez seja tempo de parar. Decisão que muitos louvam no seu semelhante mais idoso, quando este começa a revelar dificuldades. Chamam-lhe dignidade. Mas não sabem nem querem saber que esse é um dos momentos mais contundentes e demolidores da existência humana. O fim antes do fim….


O desaparecimento de referências humanas e não só empobreceram o mundo. Vivem-se tempos de enorme confusão, acha o Alemão. Quem ama, na ânsia de querer recuperar o que se vai perdendo, ou já se perdeu, nem sempre se socorre das melhores armas. Por vezes, promove o aumento da perturbação. Reordenar a vida em sociedade é tarefa gigantesca, para não dizer impossível. Que pena que o que já foi bonito não tenha lugar numa qualquer galeria de boas recordações. Talvez ajudasse um pouco no futuro. A História, a nossa, vai-se perdendo sem sequer merecer uma lágrima de saudade.


Despertemos, amigos.





segunda-feira, 21 de janeiro de 2019










HISTÓRIA Nº- 41


Sem história…


“Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite. Sem linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vozes em toda a extensão da terra, e as suas palavras até ao fim do mundo” (Das Escrituras Sagradas). O Tempo a cumprir o seu desígnio, a gastar-se sem se consumir, num enervante e contínuo andamento. Igual para todos.  E o que pode fazer o Homem perante tal poder absoluto, determinante e impositivo? Resistir-lhe? Impedi-lo de avançar? Fazê-lo, até, recuar? “Nada a fazer”, concluem os vencidos da vida, que apenas observam e acompanham tal movimento, até que se gaste totalmente. “Aproveitar”, proclamam aqueles que resistem, “enquanto dura o dia… porque a noite chegará”. Sobram os distraídos que não perdem o seu tempo a pensar no Tempo que se gasta sem se consumir… A verdade, porém, é que o tempo anda, anda, tic-tac, tic-tac…


Para os já vencidos pelo tempo e que, agora, apenas observam, é doloroso olhar em volta e perceber como muito do passado, que já foi futuro por que tanto se lutou, está desprezado. O Alemão acompanhou, ao longo de muitos anos, o levantamento de sólidas construções que enriqueceram a Vida, a sua e a de muitos, e que agora lamentavelmente se esboroam. Abandonadas, sem manutenção, serão em breve ruínas sem história, desconfia. E as que ainda resistem dificilmente se perpetuarão por falta de cuidados…


“O Tempo é o grande mestre da vida”, diz o nosso povo. Sem dúvida. Lamentavelmente, nem todos entendem e amam os seus ensinamentos. Como está triste o Alemão!...