sexta-feira, 29 de dezembro de 2017




HISTÓRIA Nº. 17


O Alemão acredita, ainda...


Curiosamente, desde a adolescência, o Alemão “olhava” 2000 como o ano da definitiva afirmação do caminho escolhido. Progresso, crescimento, estabilidade, rubricas de um balanço que, acreditava, poderia então ser feito e que apresentaria resultados brilhantes.  Alcançado aquele ano, o Alemão estaria já com uma idade que lhe permitiria, pensava ele, começar a desenhar o seu descanso para o resto da vida. E tal desenho passava por mais contemplação e menos “ação”, mais gozo e menos “preocupação”, mais satisfação e menos “necessidade”, mais paz e menos “inquietação”, mais solidariedade e menos “egoísmo”, mais unidade e menos “dispersão”. Só que não previu os elementos “variáveis”!… E foram muitos.

Os primeiros tempos do século XXI encarregaram-se de desenganar tais expectativas. Algumas ocorrências pessoais e outras, muitas, de âmbito coletivo, destruíram rapidamente quase todos os sonhos de uma vida inteira. Até a queda da ponte Hintze Ribeiro (Entre-os-Rios) em 4 de março de 2001, cerca de duas horas depois do Alemão a ter atravessado no regresso de Macieira de Fornelos, com as consequências trágicas conhecidas, o ajudou a entender muita coisa… sobretudo o “quem está de pé, olhe que não caia!” e as palavras proféticas “Em verdade vos digo que não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada…” (Evangelho de Mateus).

A ação, a preocupação, a necessidade, a inquietação, o egoísmo e a dispersão não diminuíram nos dezassete anos vividos após aquela tão esperançosa marca. Antes pelo contrário, cresceram desmesuradamente. Mas há quem veja nisso a normal evolução dos tempos e das sociedades. O egocentrismo instalou-se no mundo como grande soberano. Veio para ficar, infelizmente…  


Ao Alemão, que resiste à egolatria vigente, chamam-lhe saudosista. Paciência! Acredita, ainda, no que sempre amou…





terça-feira, 19 de dezembro de 2017





HISTÓRIA Nº. 16



O Alemão percebeu…



Manhã de terça-feira. Dezembro. Cinco graus de temperatura. Até no seu pequeno e simples, mas aconchegado, escritório, está um frio de rachar.  O Alemão treme dentro das quatro paredes cúmplices dos seus silêncios. Lá fora, o ceguinho dá largas ao seu acordeão e interpreta pela milésima vez “o mar enrola na areia”. E canta, canta com o fervor de sempre, sem evidenciar queixas sobre a sua infelicidade. Voz enrouquecida por anos a fio de repetido desempenho na esquina da Rua de Santa Catarina com a Rua Formosa… sempre aguardando a esmola de quem passa. Ouve-se, também, o pregão dos cauteleiros anunciando a tradicional lotaria milionária pelos quarteirões envolventes. O vendedor de castanhas anuncia de vez em quando o seu produto quentinho, anti frio. Uns quantos altifalantes “dão” música da época que a muitos empolga. E a multidão arrasta-se para cima e para baixo carregando embrulhos e sacolas, algumas daquelas embalagens possivelmente grandes demais para o conteúdo que transportam. Dizem que é Natal!...

O Alemão pensa mais do que fala, contrariando a vox populi que diz “a falar é que a gente se entende”. Já agora, e se assim é, como nascem os desentendimentos?... 

O seu pensamento de hoje leva-o a uma regressão acentuada no tempo em busca do motivo que o faz falar pouco e não “simpatizar” com quem fala muito. Aliás, concorda até com quem diz que “quem muito fala, pouco acerta”. Lembra-se muito bem de que o impediram muitas vezes de falar. Na infância, na adolescência (começou a trabalhar aos 14 anos), em idades mais avançadas… “És muito novo, está calado... Cala-te, já disse... Cresce e aparece... Falta-te experiência, não digas nada... Isto é assim, porque é assim...”.  E de mordaça em mordaça viu moldada a sua personalidade que o incompatibilizou irremediavelmente com a incontinência verbal de quem o rodeia.

No silêncio do seu modesto escritório o Alemão, já mais quentinho, perguntou à parede que sustenta um quadro-serigrafia, de João Orlando, que representa a “Mãe”, origem de tudo: vale a pena mudar? E pensou… Que seria do dia a dia sem a voz do ceguinho e do som do seu velho acordeão, sem o pregão dos cauteleiros e do vendedor de castanhas, sem a música debitada pelos altifalantes e sem o ruído da multidão na rua? Nada, respondeu a parede…


O Alemão percebeu…



terça-feira, 5 de dezembro de 2017




HISTÓRIA Nº. 15


Desencanto…


Não terminou pela manhã porque foi mais do que um sonho. Não arrefeceu em poucas horas porque foi mais do que um momentâneo entusiasmo. Não desapareceu em poucos dias porque foi mais do que uma passageira dedicação. Não se apagou ao fim de um par de anos porque foi mais do que um amor de verão. Dura ainda um não sei quê que o faz fixar o olhar no futuro, aguardando o aparecimento do produto da semente lançada anos a fio. Será fé?!… Confiança no futuro? Será o amor de uma vida inteira?!…  “Ah! O amor…que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê” (Luiz Vaz de Camões).

Do cume da vida onde recentemente subiu, o Alemão continua a perscrutar o horizonte, agora em busca de sinais de recuperação. Tudo enervantemente calmo. Espera, mas já não tão pacientemente como antes. A ampulheta, agora, parece deixar passar mais rapidamente os seus grãos de areia. O caminho encurta. Os dias voam. Haverá tempo ainda?!… Dói muito ver cair (ou a ser derrubado!…) o que custou tantos anos a erguer!...

O Alemão lembra-se de alguém lhe ter dito há muitos anos: - “respeita os meus servos porque amanhã vais querer que te respeitem a ti!”. E lembra-se, ainda, de ter percebido o quão importante foi essa recomendação, junto a outras, na composição da consistente e duradoura argamassa aplicada na construção de tão belo edifício.


Pena que os “novos tempos” tenham trazido novos materiais… e a possibilidade de novos cimentos; frágeis cimentos!…



sábado, 18 de novembro de 2017



HISTÓRIA (pequeno registo) Nº. 14

A Vitória chegou…

Novembro, ano 2017, dia 18, cerca das 23 horas. Sábado. A Vitória chegou! A cegonha pousou de mansinho na cidade do Porto, à noitinha, e, carinhosamente, depositou no seio da sua família quase quatro quilos de uma nova alegria. Vitória, versão no feminino do verdadeiro nome do Alemão. “Sê bem-vinda, neta querida, traz-nos o futuro com que sempre sonhámos e de cuja chegada duvidávamos já…”, saúda o Alemão com a esperança renovada, agora. E abençoa: “Vitória, que o Deus eterno te seja por habitação! E sê feliz!”


Hora de celebrar! 







terça-feira, 14 de novembro de 2017



HISTÓRIA Nº. 13

Não, não esperava!...

Se esperava? Não, não esperava. Apesar da riqueza de conteúdo armazenado no seu passado, e que de certo modo tem ajudado a amortecer o efeito do inesperado, o Alemão nunca se permitiu admitir sequer a ousadia de alguém pretender abalar o amor que alicerça o edifício de que tanto se orgulha e que a tantos custou a erguer. Para ele, uma das máximas da sua existência é: não se mexe no que se ama. Por isso a obrigação, instintiva, de proteger o bem que se ama. O que ninguém pode censurar…

Diz Rubem Alves, insigne escritor brasileiro, que “aquilo que o coração ama fica eterno”. O Alemão concorda. A propósito, o Alemão lembra as longínquas décadas de 60 e 70 do século passado, era ainda um aprendiz, em que, por amor, caminhava quilómetros e quilómetros a pé, com sapato furado, quase sempre sem um tostão na algibeira, em cumprimento voluntário desse mesmo amor. Diga-se em abono da verdade: não era o único. Muitos, alguns ainda vivos nos dias de hoje, faziam o mesmo ou muito mais. Por amor, muito amor. Histórias que o Alemão, se tiver tempo!…, ainda contará.

Durante anos, às sextas-feiras, ao final da tarde, fez o Alemão longas caminhadas desde a Avenida dos Aliados/Rua de Gonçalo Cristóvão, onde trabalhava, até Matosinhos, Avenida Meneres, para tocar na Igreja, dando vida ao velho harmónio a pedais (para encher os foles) que ajudava tanta gente simples, cheia de amor, a cantar Santos Hinos de Louvor a Deus. E em outros dias, também a pé, por diversos lugares, ensinava música, o pouco que sabia. E o que dizer dos inúmeros fins de semana, viajando com o seu velho acordeão sobre as pernas (o banco traseiro do Fiat 600 em que era transportado não tinha espaço para mais…) para alegrar os santos cultos nas aldeias, acompanhando homens simples, pobres, humildes, cheios de dificuldades na vida, mas que levavam com alegria e amor a Boa Nova a muitos lugares deste País. Homens a quem o Alemão nunca ouviu qualquer queixume. O que faziam, faziam por amor.


E se alguém não consegue ver com os olhos o amor aqui sublimado, então esforce-se por descobri-lo com o coração. Como bem sugeriu William Sheakespeare.




segunda-feira, 13 de novembro de 2017





HISTÓRIA Nº. 12


Os melhores do mundo…


Do cume da vida onde recentemente subiu, o Alemão continua a observar. Pensava já ter visto tudo, mas fica-lhe a impressão de que tem muito ainda para ver… mesmo não querendo.


“Gaba-te, cesta rota, que amanhã vais à vindima”. Ditado popular adequado a quem faz do auto elogio o recurso para a promoção das qualidades que tem… e, muitas vezes, das que não tem e julga ter.


“É claro que é um grande romance, fui eu quem o escreveu”, alguém do mundo das letras proclamou-o. Está no seu direito. “Sou o melhor do mundo porque trabalho para isso”, alguém do mundo do futebol proclamou-o. Está também no seu direito.  E no seu direito estarão todos os que se auto proclamam como os melhores do mundo seja lá em que área for, para além da literatura e do futebol que já estão ocupadas… “Sou o melhor ator do mundo; sou o melhor músico do mundo; sou o melhor pintor do mundo; sou o melhor…; sou o melhor…; sou o melhor… “ e assim por diante. Os outros, esses, são mera justificação da existência daqueles -  dos melhores.


 O Alemão não tem nada contra os melhores, antes pelo contrário. A sua existência é enriquecedora, naturalmente. Lamenta, isso sim, a vanglória e a auto proclamação dos talentos pessoais… de quem os julga ter e, por isso, tudo reclama para si em detrimento dos demais. E lamenta, sobretudo, que esse comportamento tenha chegado – é publico e notório - a áreas sagradas da vida. O egoísmo instalou-se. Está prejudicada a convivência humana alicerçada no amor e no respeito. Os espaços definem-se cada vez mais, com contornos bem vincados, entre os melhores e os outros…  


Como seria tudo bem diferente se os melhores do mundo fossem os melhores para o mundo!...


Mundo ao contrário, como alguém disse, em que os rios nascem no mar!...


sexta-feira, 3 de novembro de 2017



HISTÓRIA (pequeno desabafo) Nº. 11


Cada vez mais distante…


O Alemão tem andado calado. Subiu a um dos cumes da sua vida, a um dos mais dolorosos – a realidade. Corajosamente, diga-se, pois era-lhe previsível uma visão nada simpática. Mas subiu e, por agora, ainda só observa. Tirou, apenas, alguns apontamentos. Percebeu, finalmente e se calhar já muito tarde para rectificações, que o caminho que percorreu nem sempre foi seguro em si mesmo. O caminho da sua vida, diga-se, não o outro Caminho, que está acima de todos… e é Único.  Aliás, é a esse Caminho Único, e que ama sem limites, que atribui a sua protecção e conservação. A entrega do Alemão foi sempre genuína, honesta, desmedida, para além de inocente. Ponham inocência nisso: até mesmo na acumulação da idade normalmente já não dada a inocências…  

Daquele cume observa agora comportamentos que, certamente, já foram suas adversidades nos seus tempos de criança e da adolescência. Perseveram até ao dia hoje, lamentavelmente. Deslealdades, ruins imitações, aproveitamentos pessoais e egoísmos, desrespeitos… e o cruel cumprimento da afirmação da vox populi “tudo tens tudo vales, nada tens nada vales”. Pelo que, face ao “pouco” que sempre teve, apetece perguntar, daquele cume da vida:  O que pretenderam no passado e o que pretendem ainda hoje do Alemão?  

Daquele cume observa, ainda, a correria de gente em busca de algo que não percebe bem o que seja (o Alemão já está a uma certa distância na idade e nos sentimentos…). Percebe, apenas, que correm muito, atropelam, pisam, ultrapassam pelo lado contrário…

Momentos de indisfarçável desgaste. Também de alguma revolta. Contida revolta, descansem. No cume a que subiu continua a observar. O que descreveu são apenas as primeiras impressões.


Hora de pedir:  deixem o Alemão em paz!...



quarta-feira, 25 de outubro de 2017




HISTÓRIA Nº. 10


O Diário…



Anos 60. Século passado. Moda do cabelo crescido, estilo Beatles; calças à boca-de-sino; tacão do sapato de homem um pouco mais alto do que o habitual… e a moda do “Diário”. A exortação constante contra aqueles modismos considerados capazes de macular os princípios da formação moral considerados como os mais exemplares. Perante a ameaça de tão terríveis e pecaminosas transformações, o mundo estava perdido, dizia-se… Mas o tempo passou e o mundo lá se aguentou… pelo menos até agora. E as novidades perderam a sua perigosidade até por força da alteração das circunstancias. O Alemão já não tem cabelo e a idade tornou-o “incapaz” de vestir calças com tal corte e de usar tal tipo de sapatos. Sobra-lhe a pequena relíquia, o “Diário”, onde resistem as palavras carinhosas de muitos amigos e amigas cuja face o tempo não conseguiu apagar da sua memória.

Hoje, dezenas de anos depois. Nem de propósito. Abriu ao acaso o “Diário”. E leu um pequeno texto de alguém que, amorosamente, garantia: “Terás um futuro brilhante. Aguarde!”. Expressão profética, com validade-tempo indeterminado que deixou o Alemão a pensar, curiosamente numa altura em que se recusava a fazê-lo… A maior parte daquele futuro “garantido” é hoje passado, concluiu. O que tinha de brilhar “garantidamente” naquele futuro é passado também, sem dúvidas. Então, o futuro-amanhã ainda será brilhante ou a sua luz já se terá esgotado no futuro profetizado que passou?... Descobrir o que brilhou no futuro já passado talvez ajudasse o Alemão a controlar as suas expectativas… E se o futuro brilhante foi completamente esgotado nos outros, porque não usar um pouco do amanhã, se vier, a cuidar de quem mais se gosta?!... Ou será pecado?...

“Aquilo que os outros pensam ou dizem de ti importa zero quando tu gostas de ti, quando tu acreditas em ti e quando tu queres o melhor para ti” – mensagem recebida hoje de uma querida amiga.


O Alemão continua a não saber (ou a não querer saber…) o que é “um futuro brilhante”.






quarta-feira, 18 de outubro de 2017





HISTÓRIA (pequenina) Nº. 9



Dos caminhos da vida…



De noite, sem dormir, lembrou-se de todos os caminhos que até agora percorreu. Alguns deles sempre lealmente acompanhado. Outros, talvez aqueles em que mais apostou, literalmente sozinho. 

Chegado a esta fase adiantada da vida, percebeu que alguns dos seus caminhos foram-lhe dificultados por inúmeras situações criadas por visões egoístas da vida. O aproveitamento do outro para benefício pessoal é, infelizmente ainda hoje, prática comum na vida entre os homens. O Alemão acha que não deveria ser assim. Na adolescência sonhou com um caminho, pelo menos um, onde fossem permanentes valores como o respeito, a compreensão, a solidariedade, a amizade, a entreajuda… uma espécie de Céu na Terra. Mas o sonho virou pesadelo!

Porém, quando menos se espera, surge a excepção. Ontem mesmo, quase ao findar do dia, o abraço de um jovem que poderia ser seu filho, nome de profeta maior, rosto de anjo, dizendo em leve sussurro: “Deus não desistiu do Alemão”.

E o pesadelo virou um lindo sonho!...






quarta-feira, 11 de outubro de 2017





HISTÓRIA Nº. 8



Verões passados...



Casinha pobre, de xisto, voltada para o Marão. No cimo da aldeia, a última casa, já a caminho do monte. A beleza do dia. Os caminhos abertos pelos pés de muitas gerações. Os vinhedos denunciando a proximidade das vindimas. E a calma, sobretudo a calma trazida pela brisa quente e que agitava levemente a montanha… A sopa de cebola feita pela avó Deolinda que todos achavam deliciosa, menos o Alemão, menino da cidade… A tortura das noites escuras vencidas com a luz fraca de uma pequena lamparina. Fora, o firmamento exibia a verdadeira luz, exuberante iluminação oferecida por incontáveis astros, a quem a escuridão, submissa, permitia tanto brilho. Com o tempo, a casinha foi melhorada. A energia elétrica chegou. A viagem de comboio foi substituída por automóvel: um velho VW, “carocha”, beije, matricula MR-26-38… E diariamente, durante as férias, pela manhã, depois de comida a sopa de feijão da Tia Lurdes, feita no maior pote preto, de três pernas, que só saía da lareira para ser lavado, lá ia o Alemão mais o velho Tio Anselmo, em jeito de peregrinação, ao monte de S. Leonardo de Galafura a encher os olhos de Natureza, para si, sem igual. O Tio Anselmo, que se movia com dificuldade apoiado por canadianas, sentava-se debaixo de uma oliveira. Entretanto, o Alemão procurava, primeiro, a pequena capela, onde lia, pela milionésima vez, a poesia “S. Leonardo de Galafura”. Depois, procurava o local mais privilegiado sobre o Douro, perdão, sobre o Doiro… relendo, também e perdida a conta, “O Doiro Sublimado” – poesia e texto do grandíssimo Miguel Torga que, com a devida vénia, transcreve:


São Leonardo de Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

O Doiro sublimado
Extrato da obra «Diário XII»:

«O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a refletir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta».

Cumprida a peregrinação, o regresso à casinha lá no meio do monte, sem antes provar do presunto que o bom do Tio Anselmo fazia sempre questão de servir. No final das férias, com o “carocha” cheio de tachos e panelas repletos de amoras colhidas das silvas espalhadas por todo o lado da montanha, uma estranha melancolia se instalava entre os veraneantes, como se fora o último Verão em Vila Seca de Poiares… Um dia assim foi. O Alemão não fixou o ano.


A verdade é que tudo passa!... 





segunda-feira, 2 de outubro de 2017



HISTÓRIA Nº. 7



A propósito de estar só…



“Chega-te para aqui”, convidavam-no com frequência. A tendência para se distanciar de centros mais populosos já era nele percetível. Sempre o incomodou a forma como via encavalitarem-se uns nos outros em busca de posições de destaque a qualquer preço. As guerras pelo poder que foi observando sempre o fizeram sentir-se a mais por não ser este o mundo em que queria viver. Repugnava-lhe ver a “habilidade” tantas vezes usada por alguns espertos em áreas “sagradas” da vida humana. Tem sobrevivido cultivando a solidão. E uma forma muito própria (talvez única, perdoem-lhe esta vaidade) de se relacionar com o que é Superior.  Ah, e uma acuidade de análise que o satisfaz muito pela proteção que lhe dá. Mais vale prevenir!... 


Não se lembra de ter sido diferente em alguma fase da vida. Ou seja, foi sempre assim. Começou a trabalhar muito cedo, aos 15 anos, e por cerca de 40 anos se gastou e desgastou no mesmo lugar, sempre “só” … Mais cedo ainda, entregou-se a uma vida espiritual que o tem absorvido quase completamente, sempre “só” … E, ainda hoje, faz qualquer coisinha, porque a vida o exige, sempre “só”


O Alemão, no resto do tempo que tenha para viver, já não deve mudar. Melhor, não quer mudar. Ainda que a sua “solidão” lhe possa valer a interpretação contrária do que acima descreve. Há quem diga que "não está só, está isolado…"


 
Independentemente do que pensem, responde o Alemão com uma citação anónima: “Não tenha medo de estar só. Tenha medo de estar vazio” …






sexta-feira, 22 de setembro de 2017





HISTÓRIA (pequenina) Nº. 6



Agradecimento aos amigos…



Ontem, o “Alemão” foi-se deitar mais velho. Mais velho, mas não mais envelhecido, diga-se. Dormiu mal por causa dos pensamentos que o levaram perto, muito perto, e longe, muito longe. Tempo de recordações. E, deambulando no espaço delimitado por aquelas margens, perto e longe, encontrou e reencontrou experiências interessantes, capazes de tirarem o sono.  São muitos anos, muitas vivências…

Nos encontros e reencontros interessantes mais distantes, naturalmente silenciosos todos eles, o “Alemão” viu a expressão bondosa, o sorriso, o carinho, a compreensão, o gesto incentivador de muitos homens e mulheres que povoam o seu imaginário, quase todos já no outro lado da vida... e que, desde a sua infância e por muitos anos, amou e o amaram.  Que saudade do apoio que sempre lhe deram!... Mas viu também, descansem os que estão mais perto, a expressão amiga e sincera de quem, ainda deste lado da vida, deixa perceber: “não deixes de viver, “Alemão”. Deus te guarde.”

Adormeceu tarde!...





quarta-feira, 13 de setembro de 2017




HISTÓRIA (pequenina) Nº. 5


História de persistência…



O “Alemão” já está velho, velho e cansado. O seu passo é, agora, mais pausado. Demora um pouco mais do que os outros…, mas ainda chega onde é preciso, graças a Deus. O olhar já treme um pouco quando vê ao perto, mas, curiosamente, ainda vê muito bem ao longe… A mente, essa ainda está lúcida e, talvez por isso, a observação de alguns acontecimentos recentes lhe tenha provocado admiração ou, pelo contrário, enorme decepção.

O furacão “Harley” deixou, recentemente, um rasto de destruição por onde passou: as imagens vistas ao perto (televisão), embora “tremidas”, confirmaram-no. Naturalmente, assistiu-se a reacções desesperadas de pessoas directamente atingidas. Que infelicidade! Mas à pergunta feita a essas mesmas pessoas sobre o que pretendiam fazer no futuro, ouviu-se: “amamos a nossa terra, crescemos aqui, por isso ficamos; reconstruiremos as nossas casas; estão aqui as nossas raízes”. Enorme admiração por este povo!...






sexta-feira, 16 de junho de 2017










HISTÓRIA Nº. 4



História de respeito…



Alto da Lixa, uma qualquer quarta-feira de inverno, anos setenta do século passado. Noite de chuva, muita chuva. Apeado da camioneta que me transportou desde o Porto, corri, ribanceira abaixo, até à casa da família de Manuel Ribeiro. Numa pequena sala, voltada para o Marão, um pequeno grupo me aguardava para a realização de mais um culto. Recebido como um verdadeiro enviado – ordenado recentemente, vinte e poucos anos, um miúdo – cuidaram de mim, não fosse a chuva que me molhara generosamente resultar em alguma pneumonia. Um vizinho, o amigo Casimiro, pessoa atarracada, cedeu-me umas calças enquanto as minhas, completamente encharcadas, secavam junto à lareira. Diferenças físicas fizeram-me usar umas mini-calças que me ficavam pela barriga das pernas. Mas, atrás da velha tribuna quem disso se aperceberia? Pior, só mesmo na hora de vestir as próprias calças, já secas! O fumo da lareira se encarregara de lhes impregnar um tal cheiro que me senti um verdadeiro enchido tradicional… Hora de voltar. O bom do amigo Manuel embrulhou uma garrafa de vinho branco, verde, da sua produção, com o recado: “é para o seu jantar, quando chegar a casa”. Devolvidas as calças ao Casimiro, feitas as despedidas a tão carinhosa gente, garrafa de vinho debaixo do braço, subi a ribanceira até à estrada onde, pouco depois, deveria chegar a carreira que me transportaria até ao Porto. Chovia pouco, agora. Um carro, antes da chegada da camioneta que estranhamente demorava, parou junto de mim e me convidou de um jeito que não dava para recusar: “entre”. Era o amigo Eugénio, de Felgueiras, porteiro da pequena salinha onde, um pouco antes, havíamos estado juntos celebrando a Deus. Fez-se à estrada, a velha nacional nº. 15 – ainda não havia auto-estrada . Parou um pouco à frente e me deu de jantar num restaurante que conhecia. Bacalhauzinho na brasa, lembro como se fora hoje. De seguida, voltou à estrada, somente parando no Porto, junto à porta da minha casa. Despediu-se gentilmente, não dando qualquer atenção aos meus insistentes agradecimentos. Depositou-me na mão que estava livre – a outra conservava a garrafa embrulhada em papel de jornal que me fora oferecida pelo amigo Manuel – um Pão de Ló de Margaride, ou não fosse ele um felgueirense de quatro costados. E foi-se! Curiosamente, sem o imaginarem, puseram-me nas mãos a celebração da sua bondade… Pão (de Ló) e vinho.

“Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes…”. E eu era, de facto, um miúdo.

Os amigos Manuel da Lixa e o Eugénio de Felgueiras já morreram há muito. Mas, para mim, continuam bem vivos no espaço sagrado das minhas mais significativas memórias. Figuras inamovíveis; atitudes inapagáveis.

“Respeita os meus servos porque, amanhã, vais querer que te respeitem a ti”, disse-me alguém um dia, na minha adolescência, apontando-me o tipo de semente a usar na terra dos viventes. Que é como quem diz: “Colherás o que semeares”.  





terça-feira, 13 de junho de 2017




HISTÓRIA Nº. 3


A Lei do Retorno...


Meados do século passado. Fim de um verão. Setembro, quarta-feira, 8,00 horas da manhã. Nasceu robusto, loiro, olhos azuis, criança imponente a quem, na maternidade, chamaram de “Alemão”. “Não, não o reconheço”, declarou alguém incomodado com a pressão do momento. “Fique como filho de pai incógnito que fica bem”, respondendo, ainda, desta forma a quem, inconformado, lhe pedia “ao menos o seu sobrenome”. “Não, não”, repetiu, afastando-se, mas não o bastante para que não ouvisse, ameaçadora, a marcação de um qualquer encontro no futuro: “Oxalá não venha alguma vez a precisar do Alemão” …

Alguém profetizou, entretanto, que Deus seria o pai do “Alemão”. E assim foi. E assim tem sido.

Quinze anos mais tarde. Domingo de sol, curiosamente cerca das 8,00 da manhã, preparado para mais uma caminhada desde as Taipas até ao Bonjardim, quase Marquês, para a Escola Dominical. Na porta da rua, o “Alemão”, que já não era loiro, reconheceu quem lá atrás se recusou a reconhecê-lo. Olhando incrédulo para aquele ser –  desmazelado, barba crescida, ar de pobreza – ouviu a sua voz, pela primeira vez, a pedir-lhe: “Alemão, não tens nada que me possas dar?”.  Tinha sim, o “Alemão” tinha num dos bolsos do casaquito uma moeda de vinte e cinco tostões que a mãe lhe dera para entregar na Igreja, na coleta. Deus haveria de perdoar o desvio. Deu-lha sem qualquer tipo de hesitação. De imediato, aquela figura desapareceu como tinha aparecido. Sem qualquer gesto a não ser o descrito…

Poucos dias depois, o “Alemão” soube que o seu reconhecido fora hospitalizado. Problema grave, irreversível. Visitou-o, estava já inconsciente. Morreu pouco depois de um prolongado suspiro. Alguém lhe falara ao ouvido, segundos antes de partir: “O seu filho está aqui”. Terá reconhecido, finalmente, o “Alemão”?!...

Aos pés da cama, olhando aquela figura jacente, pensava o “Alemão”: o preço a pagar por determinadas situações da vida é, por vezes, muito altoMesmo quando, visivelmente, só custa vinte e cinco tostões…

A Lei do Retorno é implacável.




domingo, 11 de junho de 2017

História 2




HISTÓRIA Nº. 2


Cidade de Braga, fim de tarde, num bairro social, pequeno espaço, mais de 30 graus de temperatura ambiente. Berta, invisual, mulher de meia-idade em corpo de menina, muito sofrida, percebia-se. Chorava de tão revoltada pela partida que a vida lhe pregou, pensava eu. Esperava no corredor do pequeno salão-igreja pela sua vez de participar na Santa Ceia, apoiada num ombro amigo e acariciada por mãos carinhosas de quem a conduzia. Participou em lágrimas. Depois, voltou ao seu lugar, calmamente.

No fim, despedi-me de Berta com as minhas melhores palavras, de ocasião: “Deus enxugue essas lágrimas de tristeza, confortando-a com o que deseja”. “Mas não chorava de tristeza”, disse-me quase em modo de repreensão, “manifestava sim a minha alegria por Deus me permitir participar mais uma vez, neste ano, de tão maravilhoso Serviço. E como me senti feliz por tão maravilhosa dádiva!” O meu rosto não terá escondido a expressão da vergonha que senti, mas que ela não viu.  Depositei-lhe na face o meu carinhoso beijo. Com enorme admiração.


Deu-me que pensar…   Bem-haja, minha amiga Berta!



sábado, 10 de junho de 2017



HISTÓRIA Nº. 1


A faneca da pedra… 


Sempre que como fanecas, com o inevitável arrozinho de tomate a fugir do prato, lembro-me do tio Zé Allen e da sua recomendação a propósito: a da pedra é a melhor. Era um especialista em fanecas, ou não fora por uma vida inteira um frequentador das águas frias do Molhe (Foz do Douro), onde, ao largo e junto a uns velhos rochedos conhecidos, pescava regularmente tão delicioso espécimen. Por vezes, com amigos de aventuras, mesmo mal-amanhadas, cozinhava-as dentro do próprio barquinho, ainda meio vivas, usando uma pequena sertã aquecida por uma saudosa máquina a petróleo. Outras vezes, quando a pesca o justificava, subia à cidade, ao centro, batia-me à porta e, de saco de plástico na mão, entrando dizia-me com a sua voz arroucada mas agradável, carregando nos “erres”, pronúncia nele natural desde a infância: “faneca da pedrra lembrra-me o doutorre, meu sobrrinho”.
Nunca lhe perguntei o porquê do seu parecer: a faneca da pedra é a melhor. A verdade, porém, é que, não sabendo distinguir, não deixo nunca de investigar quando me servem o saboroso peixe: é faneca da pedra?...

O tio Zé Allen era uma figura cheia de histórias, sobretudo ligadas ao mar da Foz do Douro. O título do meu blog é, antes de tudo, uma homenagem a um homem que me cativou desde que o conheci, no último quartel do século passado. É, ainda, sob o tema de histórias, uma porta que me abro para a possibilidade de contar-vos, amigos, algumas lembranças que os anos já vividos começam a exigir-me.


Depois da faneca da pedra outras histórias virão.