quarta-feira, 11 de outubro de 2017





HISTÓRIA Nº. 8



Verões passados...



Casinha pobre, de xisto, voltada para o Marão. No cimo da aldeia, a última casa, já a caminho do monte. A beleza do dia. Os caminhos abertos pelos pés de muitas gerações. Os vinhedos denunciando a proximidade das vindimas. E a calma, sobretudo a calma trazida pela brisa quente e que agitava levemente a montanha… A sopa de cebola feita pela avó Deolinda que todos achavam deliciosa, menos o Alemão, menino da cidade… A tortura das noites escuras vencidas com a luz fraca de uma pequena lamparina. Fora, o firmamento exibia a verdadeira luz, exuberante iluminação oferecida por incontáveis astros, a quem a escuridão, submissa, permitia tanto brilho. Com o tempo, a casinha foi melhorada. A energia elétrica chegou. A viagem de comboio foi substituída por automóvel: um velho VW, “carocha”, beije, matricula MR-26-38… E diariamente, durante as férias, pela manhã, depois de comida a sopa de feijão da Tia Lurdes, feita no maior pote preto, de três pernas, que só saía da lareira para ser lavado, lá ia o Alemão mais o velho Tio Anselmo, em jeito de peregrinação, ao monte de S. Leonardo de Galafura a encher os olhos de Natureza, para si, sem igual. O Tio Anselmo, que se movia com dificuldade apoiado por canadianas, sentava-se debaixo de uma oliveira. Entretanto, o Alemão procurava, primeiro, a pequena capela, onde lia, pela milionésima vez, a poesia “S. Leonardo de Galafura”. Depois, procurava o local mais privilegiado sobre o Douro, perdão, sobre o Doiro… relendo, também e perdida a conta, “O Doiro Sublimado” – poesia e texto do grandíssimo Miguel Torga que, com a devida vénia, transcreve:


São Leonardo de Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

O Doiro sublimado
Extrato da obra «Diário XII»:

«O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a refletir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta».

Cumprida a peregrinação, o regresso à casinha lá no meio do monte, sem antes provar do presunto que o bom do Tio Anselmo fazia sempre questão de servir. No final das férias, com o “carocha” cheio de tachos e panelas repletos de amoras colhidas das silvas espalhadas por todo o lado da montanha, uma estranha melancolia se instalava entre os veraneantes, como se fora o último Verão em Vila Seca de Poiares… Um dia assim foi. O Alemão não fixou o ano.


A verdade é que tudo passa!... 





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