terça-feira, 19 de dezembro de 2017





HISTÓRIA Nº. 16



O Alemão percebeu…



Manhã de terça-feira. Dezembro. Cinco graus de temperatura. Até no seu pequeno e simples, mas aconchegado, escritório, está um frio de rachar.  O Alemão treme dentro das quatro paredes cúmplices dos seus silêncios. Lá fora, o ceguinho dá largas ao seu acordeão e interpreta pela milésima vez “o mar enrola na areia”. E canta, canta com o fervor de sempre, sem evidenciar queixas sobre a sua infelicidade. Voz enrouquecida por anos a fio de repetido desempenho na esquina da Rua de Santa Catarina com a Rua Formosa… sempre aguardando a esmola de quem passa. Ouve-se, também, o pregão dos cauteleiros anunciando a tradicional lotaria milionária pelos quarteirões envolventes. O vendedor de castanhas anuncia de vez em quando o seu produto quentinho, anti frio. Uns quantos altifalantes “dão” música da época que a muitos empolga. E a multidão arrasta-se para cima e para baixo carregando embrulhos e sacolas, algumas daquelas embalagens possivelmente grandes demais para o conteúdo que transportam. Dizem que é Natal!...

O Alemão pensa mais do que fala, contrariando a vox populi que diz “a falar é que a gente se entende”. Já agora, e se assim é, como nascem os desentendimentos?... 

O seu pensamento de hoje leva-o a uma regressão acentuada no tempo em busca do motivo que o faz falar pouco e não “simpatizar” com quem fala muito. Aliás, concorda até com quem diz que “quem muito fala, pouco acerta”. Lembra-se muito bem de que o impediram muitas vezes de falar. Na infância, na adolescência (começou a trabalhar aos 14 anos), em idades mais avançadas… “És muito novo, está calado... Cala-te, já disse... Cresce e aparece... Falta-te experiência, não digas nada... Isto é assim, porque é assim...”.  E de mordaça em mordaça viu moldada a sua personalidade que o incompatibilizou irremediavelmente com a incontinência verbal de quem o rodeia.

No silêncio do seu modesto escritório o Alemão, já mais quentinho, perguntou à parede que sustenta um quadro-serigrafia, de João Orlando, que representa a “Mãe”, origem de tudo: vale a pena mudar? E pensou… Que seria do dia a dia sem a voz do ceguinho e do som do seu velho acordeão, sem o pregão dos cauteleiros e do vendedor de castanhas, sem a música debitada pelos altifalantes e sem o ruído da multidão na rua? Nada, respondeu a parede…


O Alemão percebeu…



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