HISTÓRIA Nº. 16
O Alemão
percebeu…
Manhã de
terça-feira. Dezembro. Cinco graus de temperatura. Até no seu pequeno e
simples, mas aconchegado, escritório, está um frio de rachar. O Alemão
treme dentro das quatro paredes cúmplices dos seus silêncios. Lá fora, o ceguinho dá largas ao seu acordeão e
interpreta pela milésima vez “o mar
enrola na areia”. E canta, canta com o fervor de sempre, sem evidenciar
queixas sobre a sua infelicidade. Voz enrouquecida por anos a fio de repetido
desempenho na esquina da Rua de Santa Catarina com a Rua Formosa… sempre
aguardando a esmola de quem passa. Ouve-se, também, o pregão dos cauteleiros
anunciando a tradicional lotaria milionária pelos quarteirões envolventes. O
vendedor de castanhas anuncia de vez em quando o seu produto quentinho, anti
frio. Uns quantos altifalantes “dão”
música da época que a muitos empolga. E a multidão arrasta-se para cima e para
baixo carregando embrulhos e sacolas, algumas daquelas embalagens possivelmente
grandes demais para o conteúdo que transportam. Dizem que é Natal!...
O Alemão pensa mais do que fala, contrariando
a vox populi que diz “a
falar é que a gente se entende”. Já agora, e se assim é, como
nascem os desentendimentos?...
O seu pensamento
de hoje leva-o a uma regressão acentuada no tempo em busca do motivo que o faz
falar pouco e não “simpatizar” com
quem fala muito. Aliás, concorda até com quem diz que “quem muito fala, pouco acerta”. Lembra-se muito bem de que o impediram muitas vezes de falar. Na
infância, na adolescência (começou a trabalhar aos 14 anos), em idades mais
avançadas… “És muito novo, está calado... Cala-te, já disse... Cresce e aparece...
Falta-te experiência, não digas nada... Isto é assim, porque é assim...”.
E de mordaça em mordaça viu moldada a
sua personalidade que o incompatibilizou irremediavelmente com a incontinência
verbal de quem o rodeia.
No silêncio do
seu modesto escritório o Alemão, já
mais quentinho, perguntou à parede que sustenta um quadro-serigrafia, de João
Orlando, que representa a “Mãe”, origem de tudo: vale a pena mudar? E pensou… Que
seria do dia a dia sem a voz do ceguinho e do som do seu velho acordeão, sem o
pregão dos cauteleiros e do vendedor de castanhas, sem a música debitada pelos
altifalantes e sem o ruído da multidão na rua? Nada, respondeu a parede…
O
Alemão percebeu…
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