sexta-feira, 29 de dezembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 106

 

 

“Os outros nunca sentem,

Quem sente somos nós,

Sim, todos nós,

Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

 

Nada? Não sei…

Um nada que dói…”

 

Fernando Pessoa

 

 

Anda por aí, gastando os seus dias. Lançando um olhar vago sobre a zona envolvente, é capaz ainda de perceber com clareza algumas práticas propositadamente ocultadas aos seus olhos. Condescende, silenciando muitas vezes, mas não ignora o que vê…

 

O Alemão tem percebido ultimamente a acentuação do seu lado pessimista e o que vê diminui-lhe a vontade de falar. “E o que não posso e não quero exprimir fica sendo o mais secreto dos meus segredos” - Clarice Lispector.  

 

Sente no ar uma certa loucura que despreza assumidamente o bom senso. Outros tempos, diz-se. Usa-se e abusa-se de um emproado e superior individualismo. Falam-se palavras que nenhuma balança pesa, dardos perversos impunemente lançados sobre o outro. Utilizam-se olhares sobranceiros, altivezes praticadas sem qualquer legitimidade. Assumem-se incompreensíveis e censuráveis vaidades que projetam os convencidos a grandes alturas e isolam cada vez mais os “outros que nunca sentem”. Na verdade, os outros nunca sentem!...

 

A sociedade já não acolhe, repele. As portas que se abriam ao primeiro toque, já não atendem. As mãos que se estendiam abertas mesmo a quem não pedia, estão agora encolhidas. Os rostos que sorriam de bondade e ternura, estão agora tristes. Os corações que derramavam nobres sentimentos, estão agora fechados. O mundo desmorona-se!...

 

Mesmo assim, envergonhado pelo seu pessimismo, o Alemão dobra-se humilde e reverente perante o vigor da oração de Habacuque “… ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e as campos não produzam mantimento; as ovelhas da malhada sejam arrebatadas, e nos currais não haja vacas: todavia eu me alegrarei no Senhor: exultarei no Deus da minha salvação” – Bíblia Sagrada.



 

  

terça-feira, 19 de dezembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 105

 

“- Não é triste? perguntou. Você não se sente só?

(…) sorriu forte: - A gente acostuma.”

Caio Fernando Abreu

 

 

Antes do mais, perdoem-lhe o pessimismo!

 

Amar a paz implica, normalmente, a procura de lugares pouco frequentados, preferencialmente  desertos. O dia a dia em sociedade tornou-se desinteressante. A inevitável exposição de cada um, por mais discreta que seja, alimenta histórias, na sua maioria perversas, que cada vez mais afastam as pessoas entre si. A tão apreciada intriga pulula por todo o lado, até onde seria impensável encontrá-la. “Porque a todos é concedido ver, mas a poucos é dado perceber. Todos veem o que tu aparentas ser, poucos percebem aquilo que tu és.” – Nicolau Maquiavel.

 

Nos muitos anos que leva de vida, o Alemão nunca viu nada assim. Verdadeiramente espantado, assiste atualmente ao desfile contínuo e aparentemente inesgotável de tanto conhecimento sobre a vida do “outro”. E pergunta-se: por onde andaria tanto saber que somente agora se revelou, que superiores interesses justificarão a simultânea aparição de tantos babélicos devaneios? Quanta inquietação no mundo, insuportável agitação!...

 

Os sabichões multiplicam-se a cada dia. E que bem discursam do alto dos seus iluminados palanques, falando sobre tudo e, ainda mais, sobre todos! A não ser eles próprios, ninguém escapa aos incontrariáveis pareceres judiciosos que debitam categoricamente e com esmagadora sabedoria. Pena que acabem traídos por tamanha torrente de saber que os expõe a arreliadoras contradições: nos dias pares, apontam uma direção; nos ímpares, o seu contrário…

 

O Alemão vai vivendo os seus dias assumindo prazerosamente o que amou em criança e que continua a amar e a cumprir com zelo, mesmo depois de velho. Agora mais lentamente; a idade define o andamento… Alimenta-se de recordações que não perderam qualidades nutritivas e que, por isso, lhe mantêm bem viva a alma que ainda resiste. 


“A vida segue, mas as memórias dos momentos compartilhados com os amigos ficam connosco durante toda a vida” - anónimo.

 

 

 


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 104

 

Paz na terra aos homens de boa vontade. Isto é, paz para muito poucos…

 

 

“O silêncio é um retiro; é o elemento necessário para o descanso; é um portal para o outro mundo onde tudo se percebe, onde o ruído pede trégua e onde ficamos mais ricos com os ensinamentos do vazio; e é no vazio do silêncio onde encontramos a oportunidade de se escutar com os olhos para podermos educar a alma. Psiiiiuuuuu!”

Ricardo Fisher

 

A vista cansada do Alemão já não lhe permite ver grande coisa; nem ao perto nem ao longe! Ainda assim, o que vai conseguindo observar, mesmo que desfocado, permite-lhe conclusões nítidas sobre o que o rodeia. Os amigos conhecem o seu estilo narrativo e percebem que, embora diga o que sente, não costuma dizer tudo… abertamente.  Prefere as entrelinhas!

 

O que vê, entretanto, permite-lhe a pergunta: o que é que fizeram a este mundo, em que é que o transformaram? A perturbadora e permanente agitação em que ferve tornou-o definitivamente desinteressante para quem nele sempre procurou viver a sua vida em paz. Estranhos e negativos sentimentos emergiram sabe-se lá de onde, alimentando comportamentos antissociais que, por sua vez, originam uma generalizada e quase descontrolada inquietação. A pacificação já não é possível (nem interessa!…) e quem, com boa intenção, procure fazê-lo, rapidamente desiste pela viva oposição movida por parte dos interesses instalados.

 

 Alguns amigos não entenderão, mas ao Alemão, no momento, só lhe resta o silêncio, o retiro onde descansa e encontra alguma paz.

 

“Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”

Mia Couto