segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018




HISTÓRIA Nº. 21


A diáspora…


No refúgio do pequeno escritório. Segunda-feira, princípio da manhã, cedo. Pouco movimento na rua, ainda. A música e a voz do ceguinho de Santa Catarina/Formosa anunciam já, através dos primeiros acordes do “Rosa arredonda a saia”, o concerto que durará até à noitinha. Sem nada para fazer, o Alemão pensa, pensa. Com dor no coração (tem motivo para isso) … e com a estranha sensação de estar só. Onde estarão todos, eram tantos?!... Muitos já partiram para o outro lado da vida, condescendeu. É verdade. E que saudade alguns deixaram! Mas outros ainda estão por cá, no mundo, espalhados, sem que se conheça o seu paradeiro. Partiram em diversas direções. Dispersaram. Sem uma palavra, sem um adeus. Arriscaram novos caminhos. A diáspora…

O que terá acontecido? O que outrora aproximava as pessoas terá perdido a sua capacidade aglutinadora? A notória repulsão a que se assiste será fruto de novos e atraentes interesses? Quais? Que objetivos se sobrepuseram a valores e princípios como o amor, o respeito, a solidariedade… tão sublimados no passado? O dinheiro? O poder? O egoísmo? O mundo mudou, respondem. O atual paradigma aponta para alterações radicais da vida em sociedade, dizem. O Alemão não se conforma. E observa preocupado. Assiste, com tristeza, ao esvaziamento da terra (Isaías, 24). Sobretudo à perda do amor em que sempre acreditou. E pelo qual tanto lutou.

A agitação das populações ao nível da política, da educação, da justiça, do trabalho, e em tantas outras áreas da vida em sociedade, já não surpreende. Sem ofensa, o Alemão revela hoje a quem o lê que nunca acreditou muito nos “homens” … Infelizmente, em muitos casos pessoais, a vida acabou por lhe dar razão. Porém, esperava um pouco mais daqueles que, para si, constituíam e constituem, ainda, a exceção contida naquela revelação.

Onde estarão todos, eram tantos?!...







terça-feira, 13 de fevereiro de 2018




HISTÓRIA Nº. 20


A Máscara…


Coimbra. Um qualquer dia quente de um qualquer Agosto dos idos anos 80, cerca das 22 horas. O saudoso amigo Guilherme Brandão, companheiro de milhares e milhares de quilómetros, e o Alemão caminhavam após o jantar, para ajudar à digestão.  Uma das etapas da Volta a Portugal em Bicicleta, evento em que colaboravam, terminara naquela cidade, terra de tão intensas e eternas recordações. Repentinamente, de uma esquina próxima, explodiu um pregão altissonante, perturbador do silêncio aconselhável e obrigatório àquela hora da noite, que dizia: “Olha a última, é a última, quem quer a última?...”. Um pobre cauteleiro reabrira a sua barulhenta “loja”, pela presença próxima de eventuais clientes. E resultou. Pretendendo reaver a paz daquele passeio noturno, o bom do Guilherme chamou o homem, comprou-lhe a “última” e desejou-lhe uma boa noite. Gesto gratificante. Afinal, vendidas todas as frações, o homem podia finalmente regressar a casa para o merecido descanso. Atividade cansativa e desgastante a de calcorrear ruas e mais ruas para ganhar o seu sustento. E com isto foi reconquistada a paz daquela caminhada. Malograda expectativa. Dez minutos depois, noutra rua já perto do Hotel onde se hospedaram, de novo o mesmo homem, a mesma explosão, o mesmo pregão: “Olha a última, é a última, quem quer a última?...”. Desta vez não teve tempo para muito mais: reconheceu as vítimas... “Mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo”.

Esta lembrança a propósito de muitas outras situações reveladoras das habilidades-subtilezas-mentiras que alguns dominam na perfeição, sobretudo no que tange a enganar-convencer o seu próximo. Aquela habilidade não foi nada cara e acabou, mesmo, por ser divertida. Infantil, até. Mas quantas não terão sido utilizadas obrigando os atingidos por elas ao pagamento de preços muito elevados, com prestações a estenderem-se por toda uma vida… Desumanidade!


Daí que, assente na sabedoria popular, “cesteiro que faz um cesto faz um cento”, “não há duas sem três”, ou “à primeira quem quer cai, à segunda cai quem quer”, o Alemão vai-se retraindo cada vez mais, vivendo num seguro refúgio de cuidados. Lamentavelmente, tais comportamentos enganosos prejudicam um dos princípios mais importantes no relacionamento entre as pessoas: a CONFIANÇA. O Alemão desconfia que aquela confiança só será possível quando a humanidade andar, toda ela, de rosto descoberto. Sem máscaras...





sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018



HISTÓRIA Nº. 19



O Outro…


O Alemão nunca foi de muitas palavras. Poucas, muito poucas. Sempre preferiu, na maior parte das vezes, a presença segura dos silêncios. Gosta da solidão, não do isolamento. Dedica-se à observação e à consequente meditação sobre o que vê. Sem juízos. A vida moldou-o assim: poucas palavras, minuciosa observação. Feitio, dirão alguns. Medo, timidez, desconfiança, introversão, dirão outros. Ainda bem, acha ele, satisfeito por ser como é. Não teria verbo bastante para a descrição de tudo o que viu e viveu…


A sua pouca arte e engenho tem-no ajudado a conquistar caminhos de paz. É verdade que nem sempre o conseguiu. E o que conseguiu alcançou-o à custa de muita negociação leonina ao longo dos anos, desde a infância até aos dias de hoje. Sempre com muitas cedências-renúncias de que não se arrepende. Prefere ter paz a ter razão, como alguém disse…. Das poucas vezes que, na sua já adiantada idade, procurou a razão, rapidamente percebeu ter escolhido o pior caminho: exatamente o oposto da sua preferência. Lamentavelmente, concluiu, face a si, O Outro teve sempre razão!...


O Outro tem sido cruel, de uma exigência ditatorial: arrogante, egoísta, convencido, vaidoso, superior… Em todas as áreas da vida, diga-se. Entretanto, o Alemão vai gastando a vida silenciosamente, observando condescendente e, até mesmo, piedosamente tão estulto convencimento.


A vida dá muitas voltas!... Os acontecimentos mais recentes comprovam-no. O Alemão assiste hoje, muitos anos depois, ao reaparecimento de gente importante que conheceu no passado e que lhe marcaram a vida por tristes e censuráveis razões. Algumas pessoas desfilam atualmente sobre uma imensa e tortuosa passerelle, nada simpática… que não se sabe onde as levará. Provavelmente, algumas outras se seguirão…



O Alemão é de poucas, muito poucas palavras…