sexta-feira, 29 de dezembro de 2017




HISTÓRIA Nº. 17


O Alemão acredita, ainda...


Curiosamente, desde a adolescência, o Alemão “olhava” 2000 como o ano da definitiva afirmação do caminho escolhido. Progresso, crescimento, estabilidade, rubricas de um balanço que, acreditava, poderia então ser feito e que apresentaria resultados brilhantes.  Alcançado aquele ano, o Alemão estaria já com uma idade que lhe permitiria, pensava ele, começar a desenhar o seu descanso para o resto da vida. E tal desenho passava por mais contemplação e menos “ação”, mais gozo e menos “preocupação”, mais satisfação e menos “necessidade”, mais paz e menos “inquietação”, mais solidariedade e menos “egoísmo”, mais unidade e menos “dispersão”. Só que não previu os elementos “variáveis”!… E foram muitos.

Os primeiros tempos do século XXI encarregaram-se de desenganar tais expectativas. Algumas ocorrências pessoais e outras, muitas, de âmbito coletivo, destruíram rapidamente quase todos os sonhos de uma vida inteira. Até a queda da ponte Hintze Ribeiro (Entre-os-Rios) em 4 de março de 2001, cerca de duas horas depois do Alemão a ter atravessado no regresso de Macieira de Fornelos, com as consequências trágicas conhecidas, o ajudou a entender muita coisa… sobretudo o “quem está de pé, olhe que não caia!” e as palavras proféticas “Em verdade vos digo que não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada…” (Evangelho de Mateus).

A ação, a preocupação, a necessidade, a inquietação, o egoísmo e a dispersão não diminuíram nos dezassete anos vividos após aquela tão esperançosa marca. Antes pelo contrário, cresceram desmesuradamente. Mas há quem veja nisso a normal evolução dos tempos e das sociedades. O egocentrismo instalou-se no mundo como grande soberano. Veio para ficar, infelizmente…  


Ao Alemão, que resiste à egolatria vigente, chamam-lhe saudosista. Paciência! Acredita, ainda, no que sempre amou…





terça-feira, 19 de dezembro de 2017





HISTÓRIA Nº. 16



O Alemão percebeu…



Manhã de terça-feira. Dezembro. Cinco graus de temperatura. Até no seu pequeno e simples, mas aconchegado, escritório, está um frio de rachar.  O Alemão treme dentro das quatro paredes cúmplices dos seus silêncios. Lá fora, o ceguinho dá largas ao seu acordeão e interpreta pela milésima vez “o mar enrola na areia”. E canta, canta com o fervor de sempre, sem evidenciar queixas sobre a sua infelicidade. Voz enrouquecida por anos a fio de repetido desempenho na esquina da Rua de Santa Catarina com a Rua Formosa… sempre aguardando a esmola de quem passa. Ouve-se, também, o pregão dos cauteleiros anunciando a tradicional lotaria milionária pelos quarteirões envolventes. O vendedor de castanhas anuncia de vez em quando o seu produto quentinho, anti frio. Uns quantos altifalantes “dão” música da época que a muitos empolga. E a multidão arrasta-se para cima e para baixo carregando embrulhos e sacolas, algumas daquelas embalagens possivelmente grandes demais para o conteúdo que transportam. Dizem que é Natal!...

O Alemão pensa mais do que fala, contrariando a vox populi que diz “a falar é que a gente se entende”. Já agora, e se assim é, como nascem os desentendimentos?... 

O seu pensamento de hoje leva-o a uma regressão acentuada no tempo em busca do motivo que o faz falar pouco e não “simpatizar” com quem fala muito. Aliás, concorda até com quem diz que “quem muito fala, pouco acerta”. Lembra-se muito bem de que o impediram muitas vezes de falar. Na infância, na adolescência (começou a trabalhar aos 14 anos), em idades mais avançadas… “És muito novo, está calado... Cala-te, já disse... Cresce e aparece... Falta-te experiência, não digas nada... Isto é assim, porque é assim...”.  E de mordaça em mordaça viu moldada a sua personalidade que o incompatibilizou irremediavelmente com a incontinência verbal de quem o rodeia.

No silêncio do seu modesto escritório o Alemão, já mais quentinho, perguntou à parede que sustenta um quadro-serigrafia, de João Orlando, que representa a “Mãe”, origem de tudo: vale a pena mudar? E pensou… Que seria do dia a dia sem a voz do ceguinho e do som do seu velho acordeão, sem o pregão dos cauteleiros e do vendedor de castanhas, sem a música debitada pelos altifalantes e sem o ruído da multidão na rua? Nada, respondeu a parede…


O Alemão percebeu…



terça-feira, 5 de dezembro de 2017




HISTÓRIA Nº. 15


Desencanto…


Não terminou pela manhã porque foi mais do que um sonho. Não arrefeceu em poucas horas porque foi mais do que um momentâneo entusiasmo. Não desapareceu em poucos dias porque foi mais do que uma passageira dedicação. Não se apagou ao fim de um par de anos porque foi mais do que um amor de verão. Dura ainda um não sei quê que o faz fixar o olhar no futuro, aguardando o aparecimento do produto da semente lançada anos a fio. Será fé?!… Confiança no futuro? Será o amor de uma vida inteira?!…  “Ah! O amor…que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê” (Luiz Vaz de Camões).

Do cume da vida onde recentemente subiu, o Alemão continua a perscrutar o horizonte, agora em busca de sinais de recuperação. Tudo enervantemente calmo. Espera, mas já não tão pacientemente como antes. A ampulheta, agora, parece deixar passar mais rapidamente os seus grãos de areia. O caminho encurta. Os dias voam. Haverá tempo ainda?!… Dói muito ver cair (ou a ser derrubado!…) o que custou tantos anos a erguer!...

O Alemão lembra-se de alguém lhe ter dito há muitos anos: - “respeita os meus servos porque amanhã vais querer que te respeitem a ti!”. E lembra-se, ainda, de ter percebido o quão importante foi essa recomendação, junto a outras, na composição da consistente e duradoura argamassa aplicada na construção de tão belo edifício.


Pena que os “novos tempos” tenham trazido novos materiais… e a possibilidade de novos cimentos; frágeis cimentos!…