quarta-feira, 25 de outubro de 2017




HISTÓRIA Nº. 10


O Diário…



Anos 60. Século passado. Moda do cabelo crescido, estilo Beatles; calças à boca-de-sino; tacão do sapato de homem um pouco mais alto do que o habitual… e a moda do “Diário”. A exortação constante contra aqueles modismos considerados capazes de macular os princípios da formação moral considerados como os mais exemplares. Perante a ameaça de tão terríveis e pecaminosas transformações, o mundo estava perdido, dizia-se… Mas o tempo passou e o mundo lá se aguentou… pelo menos até agora. E as novidades perderam a sua perigosidade até por força da alteração das circunstancias. O Alemão já não tem cabelo e a idade tornou-o “incapaz” de vestir calças com tal corte e de usar tal tipo de sapatos. Sobra-lhe a pequena relíquia, o “Diário”, onde resistem as palavras carinhosas de muitos amigos e amigas cuja face o tempo não conseguiu apagar da sua memória.

Hoje, dezenas de anos depois. Nem de propósito. Abriu ao acaso o “Diário”. E leu um pequeno texto de alguém que, amorosamente, garantia: “Terás um futuro brilhante. Aguarde!”. Expressão profética, com validade-tempo indeterminado que deixou o Alemão a pensar, curiosamente numa altura em que se recusava a fazê-lo… A maior parte daquele futuro “garantido” é hoje passado, concluiu. O que tinha de brilhar “garantidamente” naquele futuro é passado também, sem dúvidas. Então, o futuro-amanhã ainda será brilhante ou a sua luz já se terá esgotado no futuro profetizado que passou?... Descobrir o que brilhou no futuro já passado talvez ajudasse o Alemão a controlar as suas expectativas… E se o futuro brilhante foi completamente esgotado nos outros, porque não usar um pouco do amanhã, se vier, a cuidar de quem mais se gosta?!... Ou será pecado?...

“Aquilo que os outros pensam ou dizem de ti importa zero quando tu gostas de ti, quando tu acreditas em ti e quando tu queres o melhor para ti” – mensagem recebida hoje de uma querida amiga.


O Alemão continua a não saber (ou a não querer saber…) o que é “um futuro brilhante”.






quarta-feira, 18 de outubro de 2017





HISTÓRIA (pequenina) Nº. 9



Dos caminhos da vida…



De noite, sem dormir, lembrou-se de todos os caminhos que até agora percorreu. Alguns deles sempre lealmente acompanhado. Outros, talvez aqueles em que mais apostou, literalmente sozinho. 

Chegado a esta fase adiantada da vida, percebeu que alguns dos seus caminhos foram-lhe dificultados por inúmeras situações criadas por visões egoístas da vida. O aproveitamento do outro para benefício pessoal é, infelizmente ainda hoje, prática comum na vida entre os homens. O Alemão acha que não deveria ser assim. Na adolescência sonhou com um caminho, pelo menos um, onde fossem permanentes valores como o respeito, a compreensão, a solidariedade, a amizade, a entreajuda… uma espécie de Céu na Terra. Mas o sonho virou pesadelo!

Porém, quando menos se espera, surge a excepção. Ontem mesmo, quase ao findar do dia, o abraço de um jovem que poderia ser seu filho, nome de profeta maior, rosto de anjo, dizendo em leve sussurro: “Deus não desistiu do Alemão”.

E o pesadelo virou um lindo sonho!...






quarta-feira, 11 de outubro de 2017





HISTÓRIA Nº. 8



Verões passados...



Casinha pobre, de xisto, voltada para o Marão. No cimo da aldeia, a última casa, já a caminho do monte. A beleza do dia. Os caminhos abertos pelos pés de muitas gerações. Os vinhedos denunciando a proximidade das vindimas. E a calma, sobretudo a calma trazida pela brisa quente e que agitava levemente a montanha… A sopa de cebola feita pela avó Deolinda que todos achavam deliciosa, menos o Alemão, menino da cidade… A tortura das noites escuras vencidas com a luz fraca de uma pequena lamparina. Fora, o firmamento exibia a verdadeira luz, exuberante iluminação oferecida por incontáveis astros, a quem a escuridão, submissa, permitia tanto brilho. Com o tempo, a casinha foi melhorada. A energia elétrica chegou. A viagem de comboio foi substituída por automóvel: um velho VW, “carocha”, beije, matricula MR-26-38… E diariamente, durante as férias, pela manhã, depois de comida a sopa de feijão da Tia Lurdes, feita no maior pote preto, de três pernas, que só saía da lareira para ser lavado, lá ia o Alemão mais o velho Tio Anselmo, em jeito de peregrinação, ao monte de S. Leonardo de Galafura a encher os olhos de Natureza, para si, sem igual. O Tio Anselmo, que se movia com dificuldade apoiado por canadianas, sentava-se debaixo de uma oliveira. Entretanto, o Alemão procurava, primeiro, a pequena capela, onde lia, pela milionésima vez, a poesia “S. Leonardo de Galafura”. Depois, procurava o local mais privilegiado sobre o Douro, perdão, sobre o Doiro… relendo, também e perdida a conta, “O Doiro Sublimado” – poesia e texto do grandíssimo Miguel Torga que, com a devida vénia, transcreve:


São Leonardo de Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

O Doiro sublimado
Extrato da obra «Diário XII»:

«O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a refletir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta».

Cumprida a peregrinação, o regresso à casinha lá no meio do monte, sem antes provar do presunto que o bom do Tio Anselmo fazia sempre questão de servir. No final das férias, com o “carocha” cheio de tachos e panelas repletos de amoras colhidas das silvas espalhadas por todo o lado da montanha, uma estranha melancolia se instalava entre os veraneantes, como se fora o último Verão em Vila Seca de Poiares… Um dia assim foi. O Alemão não fixou o ano.


A verdade é que tudo passa!... 





segunda-feira, 2 de outubro de 2017



HISTÓRIA Nº. 7



A propósito de estar só…



“Chega-te para aqui”, convidavam-no com frequência. A tendência para se distanciar de centros mais populosos já era nele percetível. Sempre o incomodou a forma como via encavalitarem-se uns nos outros em busca de posições de destaque a qualquer preço. As guerras pelo poder que foi observando sempre o fizeram sentir-se a mais por não ser este o mundo em que queria viver. Repugnava-lhe ver a “habilidade” tantas vezes usada por alguns espertos em áreas “sagradas” da vida humana. Tem sobrevivido cultivando a solidão. E uma forma muito própria (talvez única, perdoem-lhe esta vaidade) de se relacionar com o que é Superior.  Ah, e uma acuidade de análise que o satisfaz muito pela proteção que lhe dá. Mais vale prevenir!... 


Não se lembra de ter sido diferente em alguma fase da vida. Ou seja, foi sempre assim. Começou a trabalhar muito cedo, aos 15 anos, e por cerca de 40 anos se gastou e desgastou no mesmo lugar, sempre “só” … Mais cedo ainda, entregou-se a uma vida espiritual que o tem absorvido quase completamente, sempre “só” … E, ainda hoje, faz qualquer coisinha, porque a vida o exige, sempre “só”


O Alemão, no resto do tempo que tenha para viver, já não deve mudar. Melhor, não quer mudar. Ainda que a sua “solidão” lhe possa valer a interpretação contrária do que acima descreve. Há quem diga que "não está só, está isolado…"


 
Independentemente do que pensem, responde o Alemão com uma citação anónima: “Não tenha medo de estar só. Tenha medo de estar vazio” …