terça-feira, 30 de janeiro de 2024




HISTÓRIA Nº. 108

 

 

A Casa, os Livros e o Chá para os Fantasmas

 

 

“Antes, todos os caminhos iam;

Agora, todos os caminhos vêm.

A casa é acolhedora, os livros poucos.

E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.”

- Mário Quintana, in “Sapato Florido”

 

 

A Casa - A vontade de sair já não é a mesma. Quando sai, de longe a longe, leva consigo a vontade de voltar o mais rapidamente possível. O entardecer da vida prende-o gostosamente ao seu canto, ao lugar marcado que habitualmente o acolhe e tem já, naturalmente, a forma do seu ser. Quatro simples e invisíveis paredes levantadas com carinho. Casa ideal construída na luta de cada dia, segundo um projeto elaborado por quem sabia o que era melhor para si. Alguém que nunca lhe faltou com o Seu apoio na dura edificação do esconderijo em que o Alemão se refugia e se sente bem seguro, distante de olhares perversos, por isso mesmo dispensáveis!...

 

Os Livros - Folheia distraidamente alguns dos livros que tem arrumados na velha estante do seu escritório, onde conserva religiosamente, também, velhos retratos a preto e branco, evocativos de gente sincera, sofrida mas sorridente, e que sustenta inapagáveis histórias de vida que a eternidade lembrará... Do que lê, retém um ou outro apontamento que, entretanto, lhe chama mais a atenção e que por vezes reproduz. Ainda hoje decorou, sem esforço, que “a sinceridade é mais bela do que a própria beleza” – Fabrício Fiúza. O conforto da sua existência descobriu-o na simplicidade que “dá muito trabalho” – Clarice Lispector. Sempre ao ritmo de “basta a cada dia o seu mal” – Bíblia Sagrada, máxima aceite e aplicada desde há muito ao seu quotidiano, o Alemão vai cumprindo calma e controladamente o seu destino, sobrevivendo teimosamente ao desmoronamento deste mundo, cada vez mais desinteressante. Justamente ressalva, porém, a presença de um ou outro amigo que, definido por Alexandre O´Neill, “é a solidão derrotada!”.  

 

O Chá para os Fantasmas - Na hora do chá, “só quero um cantinho para escrever, falar comigo mesmo e relembrar sentimentos” – Fabrício Fiúza. O passado é uma das suas maiores riquezas e recordá-lo um dos seus maiores prazeres!...   


 

 

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024


HISTÓRIA Nº. 107

 

 

Há muito a fazer…

 

 

“Catar os cacos do caos, como quem cata no deserto 

o cacto - como se fosse flor. 

Catar os restos e ossos da utopia, como de porta em porta 

o lixeiro apanha detritos da festa fria e pobre no crepúsculo 

 se aquece na fogueira erguida com os destroços do dia.”

 

 Affonso Romano SantAnna

 

 

O Inverno tem-no retido um pouco mais por casa, onde gosta de estar, confessa. A chuva e o frio aconselham cautelas, mais do que noutros tempos: é que o Alemão já não é criança. Entretanto, vai espreitando o aparecimento de melhores condições climatéricas, para retomar as suas caminhadas higiénicas, que o levam habitualmente aos mesmos lugares, nos quais, sempre que os visita e mesmo sem parar, encontra motivos despertadores de alegrias adormecidas nos braços do tempo. E sempre que isto acontece, recorda, inevitavelmente, um pequeno texto de Neemias, inúmeras vezes recitado em criança e na adolescência e cujo resultado confirma: “… não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força.” 

 

O cinzentismo do dia, ainda que entrecortado, de vez em quando, por uns tímidos raios de sol, aliado à clausura doméstica forçada, convidou-o à leitura e à meditação. Da primeira, de um livro que distraidamente desfolhou, recolheu, com a devida vénia, a poesia de abertura que serve de inspiração maior a este despretensioso texto. Da segunda, recuperou uma expressão que repetiu vezes sem conta a propósito da desgraça que atingiu o mundo há quatro anos: “… depois, haverá muitos cacos para apanhar!” – Alemão. Tarefa difícil e cansativa, desmotivadora até, por um lado, pelo caos provocado por tantos pedaços não identificados em que tudo se transformou, por outro, pelo surgimento de quem, intencionalmente, em vez de juntar, mais espalhou. Trabalho inglório.

 

De repente, porém, já com o sol mais persistente, uma mensagem que o acaso não prevê. Uma voz doce e amiga cantava uma melodia conhecida e cuja letra falava em “fúria das águas”, “fogo que não queima”, “fiel proteção”, “estar abrigado”, “amor que não se pode exprimir” … Fiel Salvador!

 

Ao trabalho, que há muito a fazer! “Vou juntar os cacos, costurar os pedaços e seguir em frente. Porque é a coisa certa a ser feita.” – Clarisse Corrêa