sábado, 25 de novembro de 2023




HISTÓRIA Nº. 103



Mas se tu soubesses como a solidão pode nos enriquecer…




“Existem nas recordações de todo o homem coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio…”

Fiódor Dostoiévski

 


Bem-acondicionadas, sempre prontas para uso pessoal, cento e duas fanecas da pedra resistem ao tempo que as confirma e mantem atuais. O Alemão escreveu-as para si e para os seus amigos, algumas delas numa linguagem que só ele entende na totalidade. Revisita-as com frequência, deleitando-se nas encantadoras recordações que a sua releitura carinhosamente lhe desperta. Lembranças que por instantes lhe reproduzem épocas em que, embora materialmente pobre, se alimentava da riqueza de princípios e valores humanos que caraterizava a sociedade de então.

 

A constante sublimação daqueles tempos tem-lhe valido o epíteto de conservador, normalmente atribuído a alguém que parou no tempo… Mas quem o conhece, sabe que não só não parou no tempo, como tem lutado pelo ressurgimento de valores cuja perenidade tem sido posta em causa, riqueza gradativamente desvalorizada até ao seu completo desuso nos dias de hoje. Mundo cada vez mais pobre!...

 

Avesso a confusões, a maior parte dos seus dias viveu-os em solidão. O Alemão, agora idoso, cujo cansaço é por demais notório, em boa hora adotou esse estilo de vida desde que se conhece… e é assim que gosta de estar. Convive com os seus pensamentos, com as suas lembranças, em constantes passeios pelos imensos corredores da sua história, onde tantos expositores preservam, ufanos de tamanha honra, troféus de enorme significado.

 

 

“-Só foge da solidão quem tem medo dos próprios pensamentos, das próprias lembranças.

- Talvez…

- Mas se tu soubesses como a solidão pode nos enriquecer…”

 

Érico Veríssimo   



   

quinta-feira, 2 de novembro de 2023



HISTÓRIA Nº. 102

 


Oportunidade única…


 

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

 

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…

Quando se vê, já é 6ª. Feira…

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado…

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente…

 

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

 

Mário Quintana

 


A vida para ele começou muito cedo. Os deveres trazidos para fazer em casa ocuparam-lhe de tal modo os dias que, como discorre o poeta, nem deu pelo tempo passar. Mas quando pensava ter já definitivamente cumpridas todas as tarefas que lhe haviam sido cometidas - por ser tarde demais para ser reprovado…-, percebeu que, ainda hoje, lhe “acrescentaram” novas matérias para resolver. As férias grandes que nunca gozou bem como os intervalos de recreio que nunca aproveitou, e que desde há algum tempo se perspetivavam, voltaram ao adiamento de sempre… Para quando?...


Dos que o conheceram no início da sua vida – começou-a cedo, como disse - poucos sobrevivem como amigos presentes, sinceros. Sempre por perto, indefectíveis compagnons de route, têm acompanhado o Alemão e são verdadeiras testemunhas do seu esforço na execução daqueles deveres trazidos para fazer em casa, e das respostas possíveis que, tantas e tantas vezes sozinho, foi conseguindo dar a todos eles. Deveres-trabalhos próprios e alheios… Tarefas a que nunca se negou, permita-se-lhe a confissão.

 

Chegado aqui, o Alemão sabe bem o significado da oportunidade única que é a passagem do homem pela terra. Percorreu já muito caminho! Quanto ao restante, sempre que possível, faz por seguir o conselho de Séneca: “apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida”. Vive um dia de cada vez, como agora se diz, procurando imprimir um andamento mais moderado ao movimento dos ponteiros do relógio que lhe baliza a existência, para um melhor aproveitamento do consumo da vida.

 

É que ainda há uns deveres “acrescentados” para fazer em casa!...