terça-feira, 28 de fevereiro de 2023




HISTÓRIA Nº. 88

 

Estranho cansaço…

 

“Mas o pior é o súbito cansaço de tudo. Parece uma fortuna, parece que já se teve tudo e que não se quer mais nada”

Clarice Lispector

 

Numa das suas mais recentes caminhadas, deixando-se levar à toa, a certa altura deu consigo na zona histórica do Porto, mais precisamente nos lugares onde viveu e cresceu até ao casamento. Parou defronte de cada prédio com história e muito significado para si, hoje todos restaurados. Quanto a contar sobre famílias numerosas que ali viveram e com quem conviveu, onde sempre havia lugar para mais um! E muito, muito amor, hospitalidade, generosidade… Talvez a justificar um qualquer memorial em cada porta com a gravação de “Aqui viveu…”

 

E lembrou ainda…

 

“Sozinho, sentado na soleira da porta do prédio onde morava, observava o buliçoso movimento diário, horas a fio. Atualmente zona citadina calma para turista desfrutar, foi há muitos anos lugar de enorme frenesim. Pessoas simples, pobres, granjeavam ali o pão de cada dia, de sol a sol, de segunda a sábado, junto às bancas que montavam no chão dos passeios largos que ladeavam a rua, repetindo até à exaustão, em crescendo de intensidade, pregões sobre a qualidade dos produtos que vendiam: “sardinha fresca, vivinha”, “fruta linda, fregueses”, “olha a bela couve-lombarda” … O fecho da “loja” determinado pela venda do último artigo não significava o fim do dia. Em muitas dessas pessoas que bem conhecia, o Alemão sabia existir reservado ainda um tempo para Deus, assim como para o exercício do amor e da solidariedade junto de amigos mais desfavorecidos do que eles. E eram muitos!...

 

Não havia cansaço que fizesse parar aquela gente crente em Deus, num tempo em que sonhar com altos voos era uma ousadia que a pobreza e a desesperança desaconselhavam. Eram bem vincadas as posições e as (im)possibilidades sociais. Praticamente inultrapassáveis as linhas demarcadoras das classes definidas por duvidosos, mas nunca questionáveis critérios. Vivia-se verdadeiramente “um dia de cada vez”!...

 

Regressado da caminhada, o Alemão não parava de pensar: “que estranho cansaço o destes tempos, seletivo cansaço!...” 



Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.