HISTÓRIA Nº. 88
Estranho
cansaço…
“Mas o
pior é o súbito cansaço de tudo. Parece uma fortuna, parece que já se teve tudo
e que não se quer mais nada”
Clarice
Lispector
Numa das suas
mais recentes caminhadas, deixando-se levar à toa, a certa altura deu consigo
na zona histórica do Porto, mais precisamente nos lugares onde viveu e cresceu
até ao casamento. Parou defronte de cada prédio com história e muito
significado para si, hoje todos restaurados. Quanto a contar sobre famílias numerosas
que ali viveram e com quem conviveu, onde sempre havia lugar para mais um! E muito, muito amor, hospitalidade, generosidade… Talvez a justificar um qualquer memorial em
cada porta com a gravação de “Aqui viveu…”
E lembrou ainda…
“Sozinho,
sentado na soleira da porta do prédio onde morava, observava o buliçoso
movimento diário, horas a fio. Atualmente zona citadina calma para turista
desfrutar, foi há muitos anos lugar de enorme frenesim. Pessoas simples,
pobres, granjeavam ali o pão de cada dia, de sol a sol, de segunda a sábado,
junto às bancas que montavam no chão dos passeios largos que ladeavam a rua,
repetindo até à exaustão, em crescendo de intensidade, pregões sobre a
qualidade dos produtos que vendiam: “sardinha fresca, vivinha”, “fruta
linda, fregueses”, “olha a bela couve-lombarda” … O fecho da “loja”
determinado pela venda do último artigo não significava o fim do dia. Em muitas
dessas pessoas que bem conhecia, o Alemão sabia existir reservado ainda
um tempo para Deus, assim como para o exercício do amor e da solidariedade
junto de amigos mais desfavorecidos do que eles. E eram muitos!...
Não havia
cansaço que fizesse parar aquela gente crente em Deus, num tempo em que sonhar
com altos voos era uma ousadia que a pobreza e a desesperança desaconselhavam.
Eram bem vincadas as posições e as (im)possibilidades sociais. Praticamente
inultrapassáveis as linhas demarcadoras das classes definidas por duvidosos,
mas nunca questionáveis critérios. Vivia-se verdadeiramente “um dia de
cada vez”!...
Regressado da
caminhada, o Alemão não parava de pensar: “que estranho cansaço o destes tempos,
seletivo cansaço!...”