sexta-feira, 28 de julho de 2023



HISTÓRIA Nº. 96



E sou já do que fui tão diferente...

 

“E sou já do que fui tão diferente

Que, quando por meu nome alguém me chama,

Pasmo, quando conheço

Que ainda comigo mesmo me pareço.”

- Luis de Camões

 

O que escreve assenta invariavelmente em acontecimentos marcantes do seu passado mais remoto. Vividos em tempos de grande pobreza e sem que ninguém se permitisse expetativas de mudança para melhor no horizonte mais próximo, alguns desses acontecimentos foram de uma riqueza irrepetível. Rebuscar esses momentos não é desconfiar do futuro (valerá a pena confiar?...), é sim necessidade de não esquecer o conseguido no passado.  E sempre que essa necessidade em si se desperta, o Alemão por instantes recupera-os e carinhosamente recria-se no prazer da nobreza dos valores neles descobertos e que lhes conferem estatuto de bens imperecíveis. Um mergulho em águas límpidas, um banho de passado! A alegria de épocas em que se afirmavam e pontificavam a sinceridade, a lealdade, o amor, o respeito. Ah, e o valor da palavra dada! É a esses momentos que se refere, momentos que amou e que ninguém apagará da sua memória. Nem o tempo! Momentos que ninguém, a nenhum título, poderá impedi-lo de reviver sempre que o deseje…

 

As suas simples (simplórias!...) histórias são muito mais do que o alcançável a partir das publicações já acontecidas. Propositadamente, umas vezes oculta matéria na descrição; outras expõe mais alargadamente, mas de forma enigmática. Gritos de alma que não reeditará. Registos únicos para momentos únicos. Saudosismo? Se ser saudosista é valorizar o vivido mais do que o momento que se vive, então o Alemão aceita tal qualificação.

 

“Sou já do que fui tão diferente”, considera hoje o Alemão que, tal como o poeta ontem, olha-se através do irrefutável espelho límpido da realidade. O que vê (ou já não vê!...)  quase não reconhece. Quem aparece do outro lado diz-lhe agora muito pouco!... E não se refere às inevitáveis modificações provocadas pelo avanço etário, mas sim à ausência do que o caraterizou durante uma vida inteira: a determinação que sempre colocou em tudo o que fez. Enfraqueceu!...

  

 

“(…) Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde,

Vem não sei como, e dói não sei porquê.”

- Luis de Camões




domingo, 16 de julho de 2023



HISTÓRIA Nº. 95

 

Partir discretamente…

  

“Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. (…) Vivo a natureza integrado nela, de tal modo que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno.”

– Miguel Torga, Diário II (1943)

 

O Alemão espelha-se no texto que respeitosamente acima reproduz. Ler Miguel Torga é abrir de par em par as portas do passado à enésima contemplação da paisagem que lhe marcou a vida para a eternidade. É sujeitar-se ao despertar de fortes e perturbadoras emoções que o levam ao reencontro dos seus ancestrais e à revisitação de locais que, sozinho, como gosta, tantas vezes percorreu. Saudades, alegrias, tristezas… e sobretudo paz, muita paz!

 

Sempre que podia, evitava os tojos e as giestas, pisava cuidadosamente as urzes e outra vegetação rasteira que, como tapetes coloridos, cobriam velhos caminhos há muito abertos por catadores de lenha e por pastores. Caminhava prazerosamente pelos montes, percorria trilhas, atravessava vinhedos, explorava cardenhos abandonados procurando vida, apenas adormecida, em objetos esquecidos na hora da partida do último morador.

 

O tempo não perturbou a paisagem. O Marão altaneiro assumiu desde sempre o trono que ninguém disputa. Ao longe, nas encostas ou nos vales, as aldeias que o avô Pelão identificava, sem esquecer nenhuma, permanecem pregadas ao chão sobre o qual, carinhosamente, as edificaram, apajeando humildemente aquele incomparável gigante da natureza como se de um juramento de submissão eterna se tratasse.

 

E o silêncio, ó céus, o silêncio criador da paz que sossega o corpo e a alma de quem o procura, o silêncio que dá voz ao vento, às flores, às aves, aos animais, o silêncio que dá voz até mesmo ao pensamento.

 

A vida não cumpriu todos os sonhos do Alemão. Não, não é um lamento. Conheceu o que não projetou, viverá ainda o que lhe estiver destinado. A maior parte do seu tempo viveu-o no meio do bulício de ambientes cosmopolitas. Mas nunca esqueceu nem esquecerá os momentos vividos nos lugares sagrados que agora recordou e que sempre que os procurou lhe proporcionaram a paisagem imutável da natureza que tantas vezes lhe lavou a alma das maldades do dia a dia...    

 

 “Agora,

O remédio é partir discretamente,

sem palavras,

sem lágrimas,

sem gestos.

De que servem lamentos e protestos,

Contra o destino?” 


Torga, M, Diário XIII – Trecho do poema “Adeus”