segunda-feira, 28 de outubro de 2019









HISTÓRIA Nº. 54




Não se regressa ao passado…




O Alemão está confuso. Encorrilha a testa, esforça o olhar. Tenta encontrar o seu mundo, aquele em que viveu até há pouco tempo.  Mas não reconhece o que vê. “A visão já não é o que era”, dir-lhe-ão em jeito de conforto, mas a que ainda tem é suficiente para que perceba o que o rodeia. O seu mundo já não existe! Como quem volta de um desmaio, o lapso de tempo entre a visão e a perceção leva-o à interrogação: “onde estou, o que aconteceu?” Adormeceu com uma realidade, acordou com outra que não lhe diz nada… Uma espécie de “regresso ao futuro” onde nunca esteve, lembrando-lhe a ficção cinematográfica que tantas vezes o encantou no passado. Já agora, em que época estará?


A brusquidão e o descontrolo das mudanças desgostam-no e, pior, assustam-no. O Alemão desconfia que os ventos que animam a agitação atual resultam de terem sido consideradas dispensáveis certas etapas de ligação ao futuro. Por isso ignoradas. Desprezaram-se fundamentos importantes, comprometendo-se a normalidade do caminho… e do caminhar. Tanta pressa de alguns em chegar não se sabe bem onde! Tanta ambição.! Tanta ultrapassagem desnecessária e arriscada para todos! Tanto tempo perdido! Tanta infantilidade, enfim!


Voltar atrás. Refazer o trajeto. Percorrer agora os caminhos desprezados. O Alemão sabe que é tarde. E dói-lhe a alma por isso. Não se regressa ao passado. Só na ficção… Mesmo assim, como desejaria o Alemão que neste futuro tão à pressa desenhado fosse enxertado algum do material intemporal descartado que lhe desse esperança quanto a dias melhores! O Alemão adormeceria com a realidade que não conhece e acordaria com outra em que reconhecesse de novo o seu mundo em normal evolução.


Que bom seria!...




terça-feira, 8 de outubro de 2019











HISTÓRIA Nº. 53




Verdade seja dita…
           

      
                             “Vento que passas, leva-me contigo. Sou poeira também, folha de outono” Miguel Torga, in Diário V



Agora mesmo, e a respeito do trecho acima transcrito, o amigo Herculano lhe escreveu: “O cair das folhas… será sinal de decadência? Para uns, beleza. Para outros, tristeza”. Palavras que surpreenderam o Alemão no meio de uns quantos pensamentos…


Verdade seja dita: nunca ninguém lho exigiu. Nem pretende aqui qualquer justificação. Dividiu-se muitas e muitas vezes. Desde a adolescência. Ao longo dos anos. O quase dom da ubiquidade que em tantas ocasiões a muitos surpreendeu fê-lo chegar, quase simultaneamente, a inúmeras pessoas e a terras tão diversas. Perto e longe. Sem reservas, sem escolhas, sem negações, sem paragens, sem queixas. Sobretudo, com alegria. Percorreu a vida vigorosamente. Até aqui…


Chegou, porém, a um insuportável cansaço. Cansaço que a perda normal de alguma energia consumida pela idade não explica. Pelo menos não o convenceu, ainda. O Alemão olha à sua volta e questiona: o que tem acontecido na chamada dinâmica da vida em movimento? Inevitáveis mudanças, naturalmente. Porém, na maioria dos casos, tudo tão fantasioso, tão ilusório, para lhe não chamar algo bem pior. O mundo artificializou-se. O verdadeiro, o autêntico, deixou de ser suficiente, provocando uma inquietação que já ninguém consegue controlar.


E tudo isto cansa, ou também cansa, atingindo novos e velhos, que alguma vez na vida ouviram e amaram a mensagem que ainda hoje lhes disciplina a existência:


 “A minha graça te basta!...”, disse Deus.