sexta-feira, 16 de junho de 2017










HISTÓRIA Nº. 4



História de respeito…



Alto da Lixa, uma qualquer quarta-feira de inverno, anos setenta do século passado. Noite de chuva, muita chuva. Apeado da camioneta que me transportou desde o Porto, corri, ribanceira abaixo, até à casa da família de Manuel Ribeiro. Numa pequena sala, voltada para o Marão, um pequeno grupo me aguardava para a realização de mais um culto. Recebido como um verdadeiro enviado – ordenado recentemente, vinte e poucos anos, um miúdo – cuidaram de mim, não fosse a chuva que me molhara generosamente resultar em alguma pneumonia. Um vizinho, o amigo Casimiro, pessoa atarracada, cedeu-me umas calças enquanto as minhas, completamente encharcadas, secavam junto à lareira. Diferenças físicas fizeram-me usar umas mini-calças que me ficavam pela barriga das pernas. Mas, atrás da velha tribuna quem disso se aperceberia? Pior, só mesmo na hora de vestir as próprias calças, já secas! O fumo da lareira se encarregara de lhes impregnar um tal cheiro que me senti um verdadeiro enchido tradicional… Hora de voltar. O bom do amigo Manuel embrulhou uma garrafa de vinho branco, verde, da sua produção, com o recado: “é para o seu jantar, quando chegar a casa”. Devolvidas as calças ao Casimiro, feitas as despedidas a tão carinhosa gente, garrafa de vinho debaixo do braço, subi a ribanceira até à estrada onde, pouco depois, deveria chegar a carreira que me transportaria até ao Porto. Chovia pouco, agora. Um carro, antes da chegada da camioneta que estranhamente demorava, parou junto de mim e me convidou de um jeito que não dava para recusar: “entre”. Era o amigo Eugénio, de Felgueiras, porteiro da pequena salinha onde, um pouco antes, havíamos estado juntos celebrando a Deus. Fez-se à estrada, a velha nacional nº. 15 – ainda não havia auto-estrada . Parou um pouco à frente e me deu de jantar num restaurante que conhecia. Bacalhauzinho na brasa, lembro como se fora hoje. De seguida, voltou à estrada, somente parando no Porto, junto à porta da minha casa. Despediu-se gentilmente, não dando qualquer atenção aos meus insistentes agradecimentos. Depositou-me na mão que estava livre – a outra conservava a garrafa embrulhada em papel de jornal que me fora oferecida pelo amigo Manuel – um Pão de Ló de Margaride, ou não fosse ele um felgueirense de quatro costados. E foi-se! Curiosamente, sem o imaginarem, puseram-me nas mãos a celebração da sua bondade… Pão (de Ló) e vinho.

“Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes…”. E eu era, de facto, um miúdo.

Os amigos Manuel da Lixa e o Eugénio de Felgueiras já morreram há muito. Mas, para mim, continuam bem vivos no espaço sagrado das minhas mais significativas memórias. Figuras inamovíveis; atitudes inapagáveis.

“Respeita os meus servos porque, amanhã, vais querer que te respeitem a ti”, disse-me alguém um dia, na minha adolescência, apontando-me o tipo de semente a usar na terra dos viventes. Que é como quem diz: “Colherás o que semeares”.  





terça-feira, 13 de junho de 2017




HISTÓRIA Nº. 3


A Lei do Retorno...


Meados do século passado. Fim de um verão. Setembro, quarta-feira, 8,00 horas da manhã. Nasceu robusto, loiro, olhos azuis, criança imponente a quem, na maternidade, chamaram de “Alemão”. “Não, não o reconheço”, declarou alguém incomodado com a pressão do momento. “Fique como filho de pai incógnito que fica bem”, respondendo, ainda, desta forma a quem, inconformado, lhe pedia “ao menos o seu sobrenome”. “Não, não”, repetiu, afastando-se, mas não o bastante para que não ouvisse, ameaçadora, a marcação de um qualquer encontro no futuro: “Oxalá não venha alguma vez a precisar do Alemão” …

Alguém profetizou, entretanto, que Deus seria o pai do “Alemão”. E assim foi. E assim tem sido.

Quinze anos mais tarde. Domingo de sol, curiosamente cerca das 8,00 da manhã, preparado para mais uma caminhada desde as Taipas até ao Bonjardim, quase Marquês, para a Escola Dominical. Na porta da rua, o “Alemão”, que já não era loiro, reconheceu quem lá atrás se recusou a reconhecê-lo. Olhando incrédulo para aquele ser –  desmazelado, barba crescida, ar de pobreza – ouviu a sua voz, pela primeira vez, a pedir-lhe: “Alemão, não tens nada que me possas dar?”.  Tinha sim, o “Alemão” tinha num dos bolsos do casaquito uma moeda de vinte e cinco tostões que a mãe lhe dera para entregar na Igreja, na coleta. Deus haveria de perdoar o desvio. Deu-lha sem qualquer tipo de hesitação. De imediato, aquela figura desapareceu como tinha aparecido. Sem qualquer gesto a não ser o descrito…

Poucos dias depois, o “Alemão” soube que o seu reconhecido fora hospitalizado. Problema grave, irreversível. Visitou-o, estava já inconsciente. Morreu pouco depois de um prolongado suspiro. Alguém lhe falara ao ouvido, segundos antes de partir: “O seu filho está aqui”. Terá reconhecido, finalmente, o “Alemão”?!...

Aos pés da cama, olhando aquela figura jacente, pensava o “Alemão”: o preço a pagar por determinadas situações da vida é, por vezes, muito altoMesmo quando, visivelmente, só custa vinte e cinco tostões…

A Lei do Retorno é implacável.




domingo, 11 de junho de 2017

História 2




HISTÓRIA Nº. 2


Cidade de Braga, fim de tarde, num bairro social, pequeno espaço, mais de 30 graus de temperatura ambiente. Berta, invisual, mulher de meia-idade em corpo de menina, muito sofrida, percebia-se. Chorava de tão revoltada pela partida que a vida lhe pregou, pensava eu. Esperava no corredor do pequeno salão-igreja pela sua vez de participar na Santa Ceia, apoiada num ombro amigo e acariciada por mãos carinhosas de quem a conduzia. Participou em lágrimas. Depois, voltou ao seu lugar, calmamente.

No fim, despedi-me de Berta com as minhas melhores palavras, de ocasião: “Deus enxugue essas lágrimas de tristeza, confortando-a com o que deseja”. “Mas não chorava de tristeza”, disse-me quase em modo de repreensão, “manifestava sim a minha alegria por Deus me permitir participar mais uma vez, neste ano, de tão maravilhoso Serviço. E como me senti feliz por tão maravilhosa dádiva!” O meu rosto não terá escondido a expressão da vergonha que senti, mas que ela não viu.  Depositei-lhe na face o meu carinhoso beijo. Com enorme admiração.


Deu-me que pensar…   Bem-haja, minha amiga Berta!



sábado, 10 de junho de 2017



HISTÓRIA Nº. 1


A faneca da pedra… 


Sempre que como fanecas, com o inevitável arrozinho de tomate a fugir do prato, lembro-me do tio Zé Allen e da sua recomendação a propósito: a da pedra é a melhor. Era um especialista em fanecas, ou não fora por uma vida inteira um frequentador das águas frias do Molhe (Foz do Douro), onde, ao largo e junto a uns velhos rochedos conhecidos, pescava regularmente tão delicioso espécimen. Por vezes, com amigos de aventuras, mesmo mal-amanhadas, cozinhava-as dentro do próprio barquinho, ainda meio vivas, usando uma pequena sertã aquecida por uma saudosa máquina a petróleo. Outras vezes, quando a pesca o justificava, subia à cidade, ao centro, batia-me à porta e, de saco de plástico na mão, entrando dizia-me com a sua voz arroucada mas agradável, carregando nos “erres”, pronúncia nele natural desde a infância: “faneca da pedrra lembrra-me o doutorre, meu sobrrinho”.
Nunca lhe perguntei o porquê do seu parecer: a faneca da pedra é a melhor. A verdade, porém, é que, não sabendo distinguir, não deixo nunca de investigar quando me servem o saboroso peixe: é faneca da pedra?...

O tio Zé Allen era uma figura cheia de histórias, sobretudo ligadas ao mar da Foz do Douro. O título do meu blog é, antes de tudo, uma homenagem a um homem que me cativou desde que o conheci, no último quartel do século passado. É, ainda, sob o tema de histórias, uma porta que me abro para a possibilidade de contar-vos, amigos, algumas lembranças que os anos já vividos começam a exigir-me.


Depois da faneca da pedra outras histórias virão.